O PESO DO EMPREENDEDORISMO NO RAP

"Palavra bem na hora certa, completa;
Palavra dita com saudade, aperta;
Palavra de quem sabe o alvo, acerta;
Palavra dita com verdade, liberta"


[GOG e Zeca Baleiro - O peso da palavra]

Já pensou sobre o poder das palavras de artistas/grupos de Rap? Disseram que vale um tiro...

Declarações recentes por parte de rappers consagrados nacionalmente, que representam a assimilação de discursos empreendedoristas, podem e devem sempre despertar questionamentos. E para refletir especificamente sobre quais as implicações desse discurso nas relações que surgem entre o público, dentre muitas outras, duas falas podem ser usadas como exemplo.

Na primeira, em uma entrevista, ao relatar com muita emoção a bela história do T$G, Kaskão diz: “Meu bagulho ninguém atravessa, não. Meu Trilha, se atravessam, eu meto o rodo. Minha empresa, se é louco, imagina?”.

A segunda foi em uma entrevista do Dj Cia, na qual, ao explicar as tretas entre integrantes do RZO e a impossibilidade de novos shows com a formação completa do grupo, comentou:” Firmeza, não dou certo com essa pessoa. Beleza! é empresa, vamos pôr no contrato: o show é esse, as parada é essa, isso aqui tem que cumprir. Mano, coloca cláusula, cláusula, cláusula e multa. É uma empresa, é trabalho. Chega faz seu trampo e vai embora”.

Curioso como no primeiro exemplo fica evidente como um bem, uma propriedade privada leva o sujeito oprimido a defender os interesses dos opressores detentores de propriedade privada e meios de produção. Se antes a meta era tomar de volta o que e nosso, agora a pauta é ninguém toca no que é meu. No segundo exemplo, intriga como o problema recai sobre as pessoas. Foi alegado que o que atrapalha é o ego, não o capital e as relações sociais que ele determina. Como se o ego existisse no vácuo, não em um contexto sócio-histórico concreto, ou um defeito nas pessoas enquanto o sistema que as modela é perfeito. Para a Psicologia Histórico-Cultural as pessoas se constroem na relação social com outras pessoas.

Desde já, afirma-se que não se trata da pessoa zelar o fruto das suas conquistas individuais, assim como não tem nada a ver estabelecer alguns critérios para evitar conflito de interesses em um grupo. Não existe nesse texto a intenção de julgar rappers/grupos. A questão levantada a partir dos exemplos sugere como a defesa de uma empresa se torna mais importante do que o estabelecimento de relações sociais de cumplicidade contra o sistema, entre os manos, as minas, skatistas e ladrão do segmento Rap e Hip Hop. Afinal, qual sentido de Todos são manos se não existe irmandade sem um contrato assinado?

Sem emprego: Empreendedorismo

Sob a lógica neoliberal, o discurso empreendedorista capturou boa parte dos artistas/grupos - pelo menos dos que ascenderam nacional e internacionalmente. Apesar de o sonho da ascensão social através de narrativas como a sobre “ter um negócio”, ou a de “ser seu próprio patrão” já fazerem parte da realidade entre moradores de periferia, essa lógica cresceu bastante diante das pequenas possibilidades de um governo progressista.

Todavia, hoje, mais do que nunca, essa lógica se mostra consolidada. O discurso empreendedorista se apresenta com mais destaque no momento em que mais da metade das pessoas negras ocupadas se encontram na informalidade, quase completamente desassistidas pelo Estado, quer dizer, quando o desemprego estrutural se agrava e torna-se impossível ocultar seus efeitos na classe trabalhadora. Pode parecer contraditório, mas é funcionamento pleno do capitalismo durante a intensificação de suas crises.

Não se trata de subjugar os esforços do trabalhador desempregado, que superexplora a si mesmo e que, abandonado a própria sorte, se vira nos 30 para garantir sua sobrevivência com criatividade e sagacidade. Assim como na letra do rapper Eduardo, periféricos e periféricas deveriam ter sua grife, seu livro. Acreditamos e defendemos isso. A questão, aqui, é quando os artistas/grupos que são referência nacional funcionam como microempresas.

Sendo assim, entende-se que os artistas/grupos são espelho para muitas pessoas e que o Hip Hop é um instrumento capaz de afetar a construção de subjetividades. Isso quer dizer que, assim como forjaram “sujeitas e sujeitos periféricos” que agem politicamente a partir desse lugar como potência, podem igualmente forjar subjetividades capitalísticas, individualistas e liberais.

A relação entre membros da cultura Hip Hop

São diversas as implicações quando se escuta um artista/grupo com discurso de empreendedorismo. As letras se tornam slogans, jingles, perdem o compromisso com a denúncia e com o conhecimento para se tornar palatável aos ouvidos de consumidores. O público se torna cliente, pois perde-se a relação entre as necessidades do artista/grupo, que se tornam empresariais e as necessidades dos oprimidos, referentes à mudança estrutural. Artistas/grupos sem visibilidade por questões materiais de produção e publicidade são apagados pelo marketing daqueles que detém instrumentos de produção; entre muitas outras implicações.

Essa lógica do empreendedorismo, quando reproduzida dentro do Hip Hop através das palavras de um artista/grupo de Rap, transforma muito mais do que a música, os temas ou condições financeiras. A relação alienada do artista/grupo com o público é reduzida à objetificação, à coisificação. O público se torna um cifrão e passa a lidar entre si como se fosse coisa, como concorrentes.

O discurso de empreendedorismo utilizado por muitos artistas/grupos de Rap afasta as vozes marginalizadas do conteúdo das letras que ecoam pelo Brasil. Porém é mais preocupante a reprodução desse tipo de relação entre um pûblico que até mesmo para se manterem vivos precisam cooperar em vez de concorrer. Se as pessoas se constroem e se desenvolvem em um contexto material concreto [favela ou bairro nobre], em contato com instrumentos da cultura [revólver ou instrumento musical] e na relação com outras pessoas [policiais ou professores], quer dizer que as supostas verdades de rappers são elementos que as pessoas se apropriam para se construir. Os valores e comportamentos dos rappers/grupos se naturalizam e são reproduzidos entre o público.

Nunca se ouve falar em Economia Solidária, que minimamente zela pela horizontalidade fomentando outras relações. Falar em empreendedorismo é com funcionários mal remunerados como caminho ideal. Direcionam os anseios dos pobres rumo a reprodução da ideologia dominante. E mais uma vez, não se trata aqui de negar oportunidades, dinheiro ou negócios, mas deflagrar questionamentos para que possamos refletir enquanto militantes do Hip Hop, produtores e consumidores da indústria, como sujeitos periféricos e periféricas. Isso, para que não caiamos na sedução de narrativas que parecem de libertação, mas que na prática podem ser nocivas para as classes populares que não terão espaço no capitalismo.

O peso da palavra

As palavras de rappers quando atreladas implícita ou explicitamente ao empreendedorismo mascaram a meritocracia, por outro lado revelam um processo de desumanização dos mais pobres que, no máximo, poderão adquirir a humanidade quando se tornarem consumidores. Passa-se da defesa dos interesses da favela para sua exploração. Deteriora os laços de irmandade. Isso vai na direção oposta a tudo que a cultura Hip Hop já produziu em oprimidxs invisibilizadxs: o reconhecimento da humanidade, da cidadania, da potência criadora e do valor da vida em detrimento dessa degradação capitalista.

Por fim, essa situação lembra uma única, famosa e antiga frase escrita por Karl Marx, em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos: “Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens”.



Colunista:
Thiago Augusto Pereira Malaquias
Psicólogo Comunitário - CRP.: 13/9871
Mestrando em Psicologia Social - UFRN
Pós-graduando em Direitos Humanos - UNILA
Site: www.tapsicologo.com Instagram: @tapsicologo

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