AS TRETAS NO RAP, UM TIRO PELA CULATRA


Temos acompanhado a treta entre as figuras populares que carregam o status de "representantes do Rap Nacional" e, mais uma vez, as problemáticas no interior do movimento são conduzidas de modo simplório, raso, superficial. Diante disso, como não são apenas os famosos ou youtubers que podem expressar suas opiniões, por mais que os escritos de manos, minas e monas que fazem parte da cultura Hip Hop sejam completamente negligenciados pela "nata" do movimento, aqui estamos para agregar nesse debate para quem quiser ler.

A primeira coisa que deve ficar em destaque: a velha escola tem toda razão nas críticas que têm feito aos molecotes, a indignação é legítima e a cobrança é até mesmo uma responsabilidade dos mais velhos no papel que possuem de instruir os mais novos. Concordamos plenamente com a indignação da velha escola e reconhecemos a falta de atitude dos "novinhos". Que isso fique explícito. Até mesmo porque não conhecemos muito bem essa molecadinha que anda dando mancada, não por desinteresse, mas porque realmente o que já vimos e ouvimos não nos agregou em nada. Também não iremos publicar nenhum vídeo, porque é um texto para reflexão, não é para atualizar bochicho dando mais visibilidade para o que não nos agrega. A reflexão nos agrega mais.

Dito isso, concordar com a velha escola não significa abraçar cegamente a ideia dos caras. Quem não é famoso, quem não ganha dinheiro com visibilidade na internet precisa ter criticidade nesse momento. Quer dizer, até a velha escola precisa ser analisada, então, para não prolongar o texto, abaixo seguem alguns tópicos que merecem nossa reflexão caso seja a intenção compreender e problematizar com profundidade os fatos mais recentes das intrigas infantis do Rap Nacional.
 
 
- A conjuntura política e econômica

Vivemos em um período de intensa crise do capital agravada pela pandemia, com isso a internet se tornou o novo palco das apresentações. A corrida por visibilidade se intensificou e rappers começaram a buscar nichos de mercado no mundo virtual. Basta observar a explosão na quantidade de lives. Para citar um exemplo, temos o Rei Cirurgia Moral que entrevistou diversas personalidades do Rap Nacional, sempre buscando relembrar o passado do Hip Hop e enaltecer a velha escola, geralmente as entrevistas são muito boas. Todavia, em seu programa ele convida apenas os famosos. Até o Raul Gil parece ter mais interesse em conhecer novos talentos da periferia do que as lives ensimesmadas onde um rapper conversa com outro rapper. É como falar com o espelho. Os discursos que aparecem nessas lives frequentemente atribuem as causas dos problemas e das soluções a Deus, além disso reforçam constantemente a ideia de meritocracia. Reproduzem o papo dos fascistas sobre meritocracia e a conquista individual, mas quando as consequências se voltam contra os mesmos todos se chocam.
 
Portanto, por mais autêntica que seja a crítica e a indignação da velha escola, inevitavelmente há ganhos secundários, simbólicos, como a mera necessidade de visibilidade para manter-se ativo no mercado. Por exemplo, os melhores vídeos no canal do Ferréz estão com mil, duas mil visualizações, mas em dois dias um vídeo de treta alcança 17 mil, e não é o Ferréz agindo na malícia, é o público da internet que consome mais treta e fofoca do que conhecimento. Assim, podem alegar que não almejam visualizações, mas isso não evita que ganhem tal visibilidade. A opinião pública joga lenha na fogueira e mesmo sem querer a visibilidade é inevitável. Se toda essa revolta fosse contra algum tipo de injustiça, o que não falta no nosso país é injustiça para os famosos se rebelarem, mas se se rebelarem contra políticos, provavelmente não receberão nem os parabéns desse mesmo público. A aparição da velha guarda quando se sentiu ofendida não trouxe grandes reflexões para nenhum dos envolvidos nem para membros do Hip Hop, apenas movimentou os sites, blogs e canais, enfim, estamos aqui falando sobre isso, e só, não passa disso.

- Recursos e estratégias do Hip Hop

O Hip Hop está chegando aos 50 anos. Nos EUA foi muito forte as tretas entre rappers, todos conhecemos a história de Big e Tupac. As tretas sempre trouxeram visibilidade para o Hip Hop e o mesmo também se alimentou delas, com exemplo das batalhas de m 's, de bboys e bgirls. Ainda hoje esse recurso é utilizado, nada melhor para trazer visibilidade do que uma treta. O problema aqui é que já se passaram quase 50 anos e se até hoje precisamos desse recurso, é porque construímos poucos meios de lidar com os problemas que enfrentamos dentro da nossa cultura. Há bastante tempo as discussões no Hip Hop têm sido esvaziadas, tratadas com infantilidade e entendidas com uma certa limitação. Quando alguém vence, os rappers dizem ser responsáveis por essa vitória, quando alguém faz merda, todos rappers batem em retirada e dizem não têm nada a ver com isso.
 
O Aliado G foi brilhante ao citar Paulo Freire quando falou que existe um problema quando as ideias do opressor invadem a mente do oprimido, o oprimido vai querer ser opressor. Em seguida o rapper indagou: "os meninos pretos, conseguem dinheiro e falam uma coisa dessas?". Perfeita colocação, mas o Aliado G não comentou o fato de um rapper ter posado com arma na mão, ameaçando moleque preto em um país onde matam anualmente em media 30 mil adolescentes e jovens entre 15 e 29, mais da metade das vítimas de homicídio, sendo que entre as vítimas cerca de 75% são negros. Fica fácil sem autocrítica e sem estímulo à reflexão, se transforma em briga de torcida. Na verdade, todas as reações da velha escola expressam a falta de recursos estratégicos do Hip Hop, sejam eles intelectuais, ideológicos ou materiais, para lidar com os conflitos causados pela adesão aos valores burgueses hegemônicos.
 
Um perfil com nome do Realidade Cruel comentou algo no sentido da "dar madeirada para mostrar o que é respeito". Na moral, quem fala em dar madeirada não quer respeito, quer obediência. Se com duas décadas de Rap a única alternativa que se encontra ainda é a violência, o Hip Hop não fez sentido, pois ele nasceu exatamente para substituir essa forma de resolvermos as tretas no gueto. Vale a reflexão para não desperdiçar tantos anos de caminhada com um problema tão pífio. Rappers trabalham com as palavras e sabem o peso que elas possuem, quando Maurício usa o exemplo de que as pessoas precisam "estender um tapete vermelho". Isso não é apenas um exemplo, os elementos sugerem que rappers são realezas, o próprio exemplo dito com a maior naturalidade está acorrentado a uma lógica hierárquica. O exemplo não sugeriu uma horizontalidade ou igualdade entre eles, mas que os mais novos venerem os mais velhos, ou seja, reproduziu valores da ordem capitalista, que é patriarcal, que por sua vez é gerontocrático. Talvez um dos únicos comentários que incitaram uma reflexão foi o da Rúbia RPW, por citar conjuntura do Brasil e da condição dos jovens que acham que estão nos Estados Unidos.

- Valores dos anos 90

Por mais que os grupos e rappers do anos 90 se coloquem contra o sistema, hoje, estudando o desenvolvimento do Hip Hop no Brasil, sabemos que isso é controverso. O Rap lutou contra as opressões sem dúvida alguma, mas não atacou a raiz do sistema, afinal, o Rap no Nacional nunca teve caráter revolucionário no sentido de romper com a estrutura capitalista, com a divisão de classes sociais e com os valores burgueses. Pelo contrário, a luta dos anos 90 foi pelo resgate da nossa humanidade, uma luta por inclusão e direitos sociais, contudo, limitou-se a denunciar nossa exclusão do mercado. Talvez essa seja a maior conquista do Hip Hop e do Rap, promover um grau de emancipação política, autoestima e consciência dos direitos.
 
Nos anos 90 não se buscava derrubar o capitalismo, mas fazer parte dele e hoje muitos manos, minas e monas o compõem, exatamente como almejado. Quando Maurício DTS diz que pavimentou o asfalto que hoje a molecada pisa e caminha, ele foi muito preciso na afirmação. Exatamente, eles estão no caminho que a velha escola pavimentou nos anos 90, o caminho da meritocracia, da vitória pelo dinheiro, da conquista da cidadania, do liberalismo, do empreendedorismo, do direito de fazer parte do jogo. Foi a velha escola que direcionou o caminho hoje trilhado pelos molecotes, e isso não significa culpá-la, pois para quem realmente saiu da miséria e conseguiu transmitir conhecimento nas letras de Rap, lutar por nossos direitos e por nossa cultura já representa uma grande contribuição. Vale apenas apontar que a velha escola, assim como as demandas do mercado, tem parte no que foi construído pelo Hip Hop e pelos passos que ele tem dado no presente.
 
O Rap foi combativo, sim, mas teve seus limites em não defender um projeto emancipatório. Há algum tempo cantávamos que "logo mais vamos arrebentar no mundão". Mas falamos que íamos arrebentar como? "De cordão de elite, 18 quilates, põe no pulso logo um Breitling". Agora que os mais novos aprenderam e também querem arrebentar dessa forma, somos nós na base que perguntamos: "Que tal, tá bom?".

- 30 anos de conhecimento

O mais impressionante nisso tudo foi a postura de rapper pagando de metralhadora na mão. Se estivesse dentro de uma igreja ficaria difícil dizer se ele é esquerda ou direita. São cerca de 30 anos de Rap nacional pregando conhecimento, dizendo para fugir do crime, exaltando processos de tomada de consciência, para acabarmos em 2021 tendo que assistir uns dos grandes rappers do momento, que possui uma historia de vida foda pagando de malandro com arma na mão. é a pedagogia do medo, reinar impondo um medo básico, um método utilizado desde os jesuítas.
 
Quase 30 anos falando em consciência para terminar vendo rapper ameaçando a molecada, num país onde os jovens são os que mais são assassinados. Inclusive é questionável uma malandragem que expõe armamento - ao invés de deixar no gelo sem causar alarde. É uma exposição muito grande em comparação a miudeza do problema. Vai matar? Não. Então para que expor as armas? Para que se expor? Quer aparecer para quem? São questões que os próprios rappers têm que refletir se vale a pena essa exposição? Qual vantagem se obtém ameaçando outros rappers? Imaginamos que a cada vez que uma arma seduz alguém do Hip Hop ou é utilizada para seduzir ou ameaçar periféricos/as, um pouco do quinto elemento dessa cultura morre...

- O inimigo

Chega a ser cômica a revolta da velha escola com as falas dos molecotes. Revolta compreensível? Sim. Cômica? Igualmente. Essa treta nos trouxe a lembrança de uma entrevista concedida pelo Ice Blue para um determinado podcast, onde o integrante do Racionais Mc's falou muitas fitas importantíssimas, tipo quando disse que esses moleques de hoje não respeitam nem os pais, mas que dizem "senhor" duzentas vezes numa abordagem policial. Mas também falou várias bostas e não deixou de fazer muitas críticas à velha escola que foram, inclusive, até mais ofensivas do que a infeliz fala dos moleques, e o Blue não sofreu uma ameaça, nem uma crítica. Blue chamou uma galera de desatualizada, atacou até a roupa usada por quem preservou o estilo dos anos 90. Por que silêncio? Respeito a algum tipo de hierarquia?
 
Podemos ir além, o governo não compra vacina, quando compra pede propina, destrói as políticas publicas, sobe o morro e mata 29 pessoas, diz que universidade deve ser para poucos, oferece um auxilio emergencial que mal permite pra comprar um gás de cozinha e 500g de carne, mas a indignação e o poder bélico dos manos do Rap Nacional estão contra quem? Contra moleques que falam bosta na internet. Então é isso, temos um governo que humilha os brasileiros e brasileiras mais pobres, retira todo pouco que temos, nos prende, nos mata, mas contra o sistema não aparece um malandro com fuzil na mão ameaçando o presidente. Precisamos de um cara desequilibrado psicologicamente para dar uma facada no presidente, enquanto isso os famosos do Rap pagam de arma na mão, feridos com palavras de moleques.

- Uma surpresa esperada

Durante a redação deste texto recebemos um vídeo, desses telejornais policialescos, cuja manchete dizia "rapper empunha armas de grosso calibre". No vídeo um apresentador cuzão também recorreu ao discurso meritocrático, dizendo que "teve a chance de 'RE'socializar". E ao lado do apresentador um policial dava lição de moral, lembrando o rapper o básico, que ele é um influenciador de opiniões e deveria ter cuidado com o que divulga. Tudo isso só confirma que os prejudicados sempre seremos nós.
 
Tudo isso só confirma que nos faltam recursos e sabedoria para lidar com as tretas. Agora teremos outro problema, vai aparecer um monte que acha que treta com polícia agrega currículo do crime, aqueles que romantizam a cadeia, mas que nunca levaram um miojo pra quem cumpre pena. Por fim, esperamos que nada grave ocorra com o rapper e com os demais, ainda zelamos pelo diálogo entre os de baixo, acreditamos nos nossos irmãos e irmãs de periferia. Daqui pra frente é segurar o BO e entender que Deus não responde a todas as perguntas, contra o sistema é nóis por nóis, e se não for assim eles passam por cima porque nossa morte ou nossa prisão é lucro.  
 
E quem lucrou foi a emissora que usou do rapper para ganhar ibope, não foram os manos, minas e monas que vivem e se preocupam verdadeiramente com os rumos da cultura Hip Hop. A treta alimentou o inimigo!

- Muito além das desculpas

Parece que os acontecimentos não deixam terminar o texto, recebemos outro vídeo, dessa vez com as desculpas do chamado Dfideliz. Bem, quem deve aceitar ou não as desculpas evidentemente são os ofendidos, o que não impede-nos de entender a situação. Vamos fazer um balanço dessa parada e entender o sentido por trás das palavras do rapaz arrependido. Uns manos mais novos falam besteira, os manos mais velhos agem por impulso, o mano mais novo pede desculpa e o mano mais velho passa a ser alvo da policia. Saldo: sete a zero para o sistema.
 
Quando Dfideliz pede desculpas, ele ainda se coloca como o humilde que aprendeu a "ser mais homem", conforme nas palavras do mesmo, enquanto os manos mais velhos ficam com a medalha de inconsequentes. As desculpas são uma remissão individual, livra o sujeito da culpa, todavia não gera nenhum aprendizado, pois o próprio que pediu desculpas não conseguiu enxergar o quanto é dominado pelos valores burgueses. Amanhã vai fazer merda de novo. Não possibilitou aos fãs e seguidores um entendimento mais profundo sobre as razões políticas e ideológicas que criaram uma treta entre quem supostamente ganha dinheiro e quem supostamente não ganha.
 
Mas o mais interessante foi a parte em que Dfideliz diz que vai resolver as coisas "nos bastidores". Isso nos diz muita coisa. Os caras começam uma treta que afeta diversos rappers, mas, principalmente, afeta todo publico Hip Hop que é bombardeado com notícias e opiniões rasas, e na hora de resolverem a treta correm para atrás das cortinas. Ele colocou um muro entre o público Hip Hop e as estrelinhas do streaming. É uma espécie de corporativismo, onde os de baixo não participam, uma festinha particular de reconciliação entre aqueles que manipulam e esvaziam os debates no interior do Hip Hop. As estrelas do Hip Hop hoje se configuram como um fragmento da mentalidade burguesa dentro da classe trabalhadora, quase outra classe social da qual não compartilhamos dos mesmos interesses. Queremos um Hip Hop pela libertação, eles/as querem um Hip Hop apenas pela liberdade [de mercado]. E são tipo os políticos, tudo acaba em pizza em reunião com portas fechadas.


Por fim, podemos concluir que as tretas recorrentes no Hip Hop têm sido conduzidas de modo degradante até mesmo por aqueles/as que são referência. Os moleques faltaram com respeito e a atenção deve ser chamada, sim, a velha escola tem razão nisso. Não falta seriedade e compromisso na velha escola, o que falta é a tal consciência que tanto pregavam no passado. Se no Rap tem pobres e tem ricos não é por causa de ou outro personagem [olha aí o sintoma desse discurso meritocrático], muito menos por causa de uma infeliz fala, mas é por causa do próprio sistema capitalista que tanto combatemos. É o sistema que atola dinheiro no bolso de quem canta música vazia e invisibiliza quem tem criticidade. Essas armas, esses vídeos e os ataques da velha escola são um completo fracasso na escolha do alvo. Por outro lado, até a fabricante de papel higiênico Personal quando fez publicidade racista pediu desculpas, o tempo passou e ela continua líder no mercado fabricando a mesma coisa de sempre, papel higiênico.

Diante de toda essa disposição contra moleques e, ao mesmo tempo, toda essa passividade contra o governo, vale questionar: será que 30 anos falando em consciência serviu para estimular o pensamento crítico na periferia, ou serviu apenas para os rappers famosos terem espaço no mercado discursando sobre consciência? E essa humildade para pedir desculpas, será que se converte em compromisso com o pensamento crítico antissistema ou apenas livra da culpa para não sair feião nas ideias?
 
Somos de um Hip Hop que ainda acredita mais nos livros do que nas armas. Ninguém do Rap apontou os livros como alternativa para compreensão do problema. Isso é melhor que se pode fazer, pois vigiar e apontar as armas é papel dos porcos fardados.


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Texto escrito por:
Thiago Augusto Pereira Malaquias
Militante Hip Hop e Psicólogo - CRP.13-9871
Contato: tapm83@gmail.com
 
Em parceria com: Rodrigo Ktarse
Contato: www.facebook.com/rodrigo.ktarse

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