Se
o jeito de entender o problema guia a maneira a forma de enfrenta-lo, a
primeira coisa que surge na mente é que isso vai depender se essas
pessoas [ou grupos] estão ocupando a posição de oprimidas ou de
opressoras.
Se
tratando de oprimidas, estas quando reproduzem a ideologia dos
opressores quer dizer que a educação não foi libertadora, já dizia Paulo
Freire. E de fato ela não tem sido libertadora. Pensando nisto, como
membros de uma cultura como o Hip Hop - que historicamente agrega os
manos, as minas e as monas negros/as e pobres na luta por direitos -,
não deveríamos negligenciar duas ações: a pedagógica e a combativa.
HISTÓRIA HEGEMÔNICA DOS DIREITOS HUMANOS
Começando pela ação política-pedagógica, de início podemos definir a ideia de Direitos Humanos como:
“um
conjunto de prerrogativas que se estendem a todas as pessoas,
independente de qualquer distinção. Eles abrangem aspectos civis,
políticos, sociais, culturais e econômicos [...] são direitos inerentes a
todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade,
etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição” [1].
“normas
que reconhecem e protegem a dignidade de todos os seres humanos. Os
direitos humanos regem o modo como os seres humanos individualmente
vivem em sociedade e entre si, bem como sua relação com o Estado e as
obrigações que o Estado tem em relação a eles” [2].
Após
as definições da ideia, podemos compreender que, dentro de uma leitura
histórica, qualquer tentativa de identificar uma origem única para os
Direitos Humanos é um equívoco. Norbert Bobbio, em “A Era dos direitos”,
escreve que é um equívoco porque é um termo vago e impreciso, também
porque em todas as sociedades sempre houve um sistema próprio de crença e
valores acerca do Ser Humano, tratados de liberdades, relações,
dignidade e da própria existência. E como veremos adiante, a narrativa
ocidental depende da aniquilação ou submissão dos demais povos e
culturas para manter a hegemonia.
Na literatura ocidental a história dos Direitos Humanos é dividida em três gerações:
1ª geração]
é representada pela luta por direitos civis e políticos contra poderes
dos Estados, resultando das chamadas Revoluções Inglesas [1648],
Americana [1776], culminando na Declaração dos Direito dos Homens e do
Cidadão e na Revolução Francesa [1789-1799].
2ª geração]
representada pela luta do proletariado [1917], por direitos sociais, e
econômicos e culturais que foi travada contra os efeitos da revolução
industrial burguesa que impôs seu modelo produtivo, assim como as
insurgências revolucionárias anticoloniais que explodiram em meados dos
séculos XVIII e XIX.
3ª geração] representada pela luta
por direitos humanitários, étnicos, individuais, ambientais e de
autodeterminação, durante a metade do século XX, após o mundo conhecer
os horrores do genocídio e as atrocidades do nazismo e da II guerra
mundial. Tem seu marco no pacto pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos [1948].
Essa
versão é disseminada por Karel Vasak, Fábio Konder Comparato,
Boaventura Sousa Santos, entre outros. Alguns autores e autoras já
começaram a falar até mesmo em 4ª geração] que aborda os efeitos
dos avanços tecnológicos da computação e da bioética das pesquisas em
engenharia genética. E cabe antecipar que outros autores nos trazem
outra leitura. Como Paulo Renato Vitoria, que em um texto intitulado "A
colonização das utopias",
parte do princípio de que a narrativa geracional nasce no início da Era
moderna com a noção individualista da sociedade.
No Brasil,
segundo a professora de Serviço Social, Myrian Vera Baptista, a
preocupação com os direitos do Ser Humano chega em meados de 60 e 70,
contra o regime ditatorial, ou seja, tardiamente. Essa luta ganha força
com o avanço do neoliberalismo e quando a política penal elegeu um novo
inimigo público, transferindo a opressão do Estado da figura do
comunista para a do “criminoso”. Mas a forma institucional dessa
luta se consolida apenas com a Constituição Federal de 1988, cujos
fundamentos se assentam nos princípios da Declaração Universal dos
Direitos Humanos. A partir daí, diversas leis, decretos e políticas
passaram a se pautar por tais princípios. Hoje, entidades, organizações e
militantes dos Direitos Humanos se mostram muito atuantes nas garantias
mínimas de sobrevivência, como alimentação, saúde, trabalho e moradia,
assim como no tema da segurança pública, no combate ao recrudescendo do
aparato repressivo, contra o terrorismo de Estado e contra o genocídio
de negros e povos originários, desenvolvendo ações no âmbito do
aprisionamento em massa, das violências de gêneros e pessoas LGBT, na
educação; e inclusive na proteção de militantes defensores dos Direitos
Humanos, que permanentemente são alvo da letalidade do Estado.
Dessa
forma, percebe-se que a defesa Direitos Humanos tem extrema relevância
na sociedade em que vivemos, principalmente diante da degradação humana
promovida pelo ataque neoliberal às garantias mínimas de sobrevivência.
São direitos conquistados através de sangue; muitos morreram na
resistência para que hoje o Ser Humano tivesse o mínimo de direitos...
[pelo menos no papel]. E mesmo sendo pouquíssimo, isso deve ser
preservado. Inegavelmente!
OBSERVAÇÕES CONTRA HEGEMÔNICAS SOBRE DIREITOS HUMANOS
A defesa dos Direitos Humanos deve ser feita, sem sombra de dúvida, mas de forma crítica, descolonizada e anticapitalista. Em "O que eh racismo estrutural", o jurista Sílvio Almeida comenta que, para Luiz Gama, "o Direito era apenas uma das armas que, na luta pela liberdade, poderiam e deveriam ser utilizadas contra os senhores".
Podemos seguir nessa mesma linha de raciocíonio.
Um
dos problemas que demandam superação trata-se do caráter universalista
da Declaração Universal dos Direitos Humanos - como se fosse homogênea a
noção sobre o que é o Ser Humano e como ele deveria se portar. Sinônimo
disso é o fato de 58 países terem adotado a Declaração, em 1948, e,
atualmente, ela ser o documento traduzido no maior número de línguas. Em
2018 foram identificadas 525 traduções ao redor do mundo. O alerta
aqui, conforme afirma o professor Walter D. Mignolo, em "Desafios decoloniais hoje", consiste no fato de
que “os acontecimentos filosóficos e históricos da Europa não são
universais e não representam o que aconteceu no mundo todo; trata-se de
eventos regionais disseminados como absolutos”.
A invasão da Bastilha, o ataque ao Palácio Real, as revoluções do proletariado, o combate ao nazismo: tudo realização de “Manos” que eram explorados por algum tipo de poder. “Mano”, aqui não se limita ao dialeto, nem à irmandade que existe entre nós periféricos. É algo maior, relacionado ao movimento dos oprimidos dentro da posição desprivilegiada que ocupa nas lutas de classe. Mais do que identificação, é a tomada de consciência dessa do da origem, da razão e do potencial dessa identificação. Significa um sentimento coletivo que atravessa os sujeitos em determinada circunstância, que faz compartilharem as mesmas necessidades de mudança, que une as consciências em um único objetivo que só pode ser atingido com a suplantação da ordem estabelecida.
E é nesse sentido que olhares contra hegemônicos antissistema são importantíssimos. É sabido que “us Mano” da burguesia francesa continuaram a escravizar africanos, controlar colônias e ainda promoveram barbáries com outros povos através de Napoleão Bonaparte. Também se tem conhecimento que "us Mano" revolucionários perderam grande parte do próprio horizonte revolucionário no seio da manutenção do Estado, com isso os direitos sociais se tornaram uma forma de favorecer a burguesia contra a revolta dos trabalhadores. Além disso, sabemos que a Organização das Nações Unidas atua como um dispositivo de controle que visa controlar as relações, os recursos e impor ao mundo uma dinâmica capitalista. Ou seja, essas experiências dizimaram e desprezaram as experiências de outros povos; essas experiências buscam agora se universalizar aniquilando ou invisibilizando culturas inteiras para impor seu regime produtivo e existencial.
Temos a pioneira perspectiva africana sobre direitos fundamentais humanos e dos povos, contida na “Carta de Mandinga”
[ou, Pacto de Kurukanfuga]. Datado do século XIII, aproximadamente do ano
de 1222, o documento foi transmitido oralmente por Griôs e é
considerado uma das primeiras constituições que abordam os direitos dos
povos visando mediar uma relação harmônica entre diferentes clãs, além
disso já se preocupava com o direito de mulheres. Em 2009 a carta foi
tombada patrimônio da humanidade pela UNESCO.
Trazendo para o presente,
temos a primeira declaração oficial do movimento neozapatista,
intitulada "Primeira Declaração da Selva Lacandona", que existe desde 1984 em defesa de independência, liberdade e terra
comunal, afirmando em um trecho: “Há muitos anos os
ditadores vêm realizando uma guerra genocida não declarada contra nossos
povos. Por isso, pedimos sua participação decidida, apoiando este plano
do povo mexicano que luta por trabalho, terra, teto, alimentação,
saúde, educação, independência, liberdade, democracia, justiça e paz”. Depois
dessa declaração milhares de pessoas se juntaram aos zapatistas na
Selva Lacandona, reconhecendo a própria história, valorizando as raízes
do povo e seus interesses coletivos antimperialistas. Uma legítima luta
em curso pelo direito de Ser um Humano livre, tanto que na data de 1 de
janeiro de 2021 os zapatistas emitiram “Uma declaração... pela vida!”,
convocando uma resistência a nível global contra a desumanização do
capitalismo, em nome da autonomia dos povos e sustentabilidade do
planeta. Além desses exemplos, não podemos imaginar quantos tratados
orais de convivência entre povos originários jamais iremos conhecer,
sendo que os que poderíamos conhecer e sobreviveram são cada vez mais
oprimidos.
REFLEXÕES CONTRA HEGEMÔNICAS SOBRE DIREITOS HUMANOS NA PERIFERIA
Os
olhares antissistema são importantes, especialmente para confrontar a narrativa dos "vencedores" e resgatar essa
historicidade dos "vencidos". Com esse olhar, Paulo R.
Vitoria escreve: “Direitos humanos (ocidentais), democracia (liberal) e
políticas econômicas neoliberais formam hoje parte de um mesmo pacote da
globalização ocidental dominante. São receitas “universais” para
atingir o desenvolvimento, o progresso, a paz e o sucesso; são grandes
promessas não generalizáveis da modernidade/colonialidade, as quais,
paradoxalmente, provocam resultados diametralmente opostos quando
aplicadas pelos países empobrecidos: mais subdesenvolvimento, atraso,
violência e dependência. Ao mesmo tempo em que se proclamam direitos e
igualdades abstratas, naturalizam-se violações e assimetrias concretas,
generalizam-se os valores burgueses e perpetua-se a complexa estrutura
que produz e reproduz a colonialidade do poder”.
Vejamos
no Brasil... Aqui o direito que imperou por quatro séculos foi ditado
pelo colonizador, foi o direito à propriedade privada dos senhores, seja
ela as terras indígenas ou os corpos dos africanos. A maioria das
nossas referencias foram destruídas ou mortas lutando pelo direito de
viver, de sobreviver, de não ver seu povo ser exterminado ou
superexplorado pela elite brasileira. Confederação dos Tamoios, Palmares, Dragão do Mar, Revolta
dos Malês, Marçal de Souza, Marighella, Chico Mendes, Paulo Freire,
Panteras Negras, Martin Luther King, de Carolina de Jesus a Marielle,
Revolução do Haiti, Movimento Negro Unificado, Samba/Rap/Funk, Lampião e
seu bando de cangaceiros, indígenas e resistência armada, metalúrgicos e
as greves, jovens contra a ditadura, o campo e a organização do MST,
rádios piratas e a socialização dos meios de comunicação, feminismos,
movimentos sociais e a conquista do Sistema Único de Saúde, Reforma
Psiquiátrica, LGBTs e o combate aos preconceitos, intelectuais e
movimento negro: tudo é Direitos Humanos. Sabotage foi luta por nossos
Direitos Humanos ao declamar que “um bom lugar se constrói com humildade”.
Mas a ideologia colonizadora dos Direitos Humanos é tentar viabilizar os direitos dos mais pobres por um lado, mas por outro assegurar o acúmulo de riqueza e sua proteção através de políticas de segurança genocida. Dizem defender direitos e matam quem defende os Direitos Humanos. O respeito à dignidade humana que constitui a base da “cidadania” dentro da democracia burguesa, serve para pedirem, por exemplo, punições mais severas para homens e mulheres na cadeia, tortura contra adolescentes e ações da polícia assassina em regiões periféricas,
Não
há novidade alguma na afirmação de que direitos não se efetivam plenamente
para grande parcela da população brasileira, contudo ainda assim se
efetivam para outra parcela. "Os direitos humanos realmente existentes, apesar de serem direitos de todos os seres humanos em abstrato, são, na prática, direitos de poucos (indivíduos ou
empresas) privilegiados em face das maiorias miseráveis, pautados por relações de mercado, e não de cidadania", afirma Paulo R.
Vitoria. Então, quer dizer que as pessoas que usufruem dos direitos
conquistados pelas lutas dos oprimidos, são mesmas pessoas que produzem e
reproduzem o discurso “Direitos Humanos para humanos direitos”, “Direito dus Mano” e “bandidos bom é bandido morto”.
Os privilegiados que são considerados Seres Humanos roubam o status de
Ser Humano que os oprimidos e seus antepassados conquistaram, privando
os próprios oprimidos de gozarem desse status de Ser um Humano.
Resultado: Os únicos que não usufruem dos "Direitos dus Mano", são os próprios "Mano", quem usufrui desses direitos eh quem esta reproduzindo esse discurso.
Deste modo, a expressão “dus Mano”
na boca da burguesia associa ao crime toda comunidade Hip Hop e sua
ascendência, todos os negros e pobres. Não se restringe aos presos e
transgressores da lei [como costumam utilizar], atinge as famílias e as
quebradas com ódio de classe e raça.
Não desumaniza o preso ou pessoas que cometeram crimes e pagam sua
sentença, atinge diretamente moradores e a cultura das periferias do
Brasil, onde as pessoas se chamam de manos [sendo ou não do Hip Hop]. A
expressão desumaniza uma etnia, uma classe e o gênero cujo corpo é “a carne mais barata do mercado”.
Em contrapartida, na boca de periféricos e periféricas, a expressão "Direito dus Mano" precisa adquirir outro sentido, precisa ser ressignificada, não mais
gerar um estigma que desumaniza, mas despertar o reconhecimento da
tentativa de desumanização e mobilizar afetos capazes de unir todas as
categorias de oprimidos. Ademais, não estaremos sozinho nessa batalha, como versa Paulo R. Vitoria: "a luta pelos direitos humanos não deve
restringir-se à luta pela concretização dos Direitos Humanos realmente
existentes, abstratos e despolitizados, mas na disputa pela sua
ressignificação, de modo que possam efetivamente transformar as
relações sociais em favor das maiorias".
PELO DIREITO DE MANOS, MINAS E MONAS
A burguesia brasileira sempre convence a maioria da população de que o problema não está nela e sua subserviência ao capital estrangeiro, de que o que impede o “progresso” nacional são as pessoas que ela elege como inimigas. Eleger “us Mano” só reforça o exército dos excluídos, que por sua vez já comporta: “loucos, histéricas, bandidos, trombadinhas, aposentados, maconheiros, traficantes, sapatões, capoeiristas, viados, desempregados, pichadores, macumbeiros, bichas, marginais, jovens da favela, novinhas, inferiores, drogados, vitimistas, índios, doentes, crentes, pobres, negros, pecadores, vadios, imorais, famílias desestruturadas, assaltantes, bêbados, devedores, degenerados, pivetes, defensores de bandido, 'mimizentos', velhos, malandros, putas, trabalhadores informais e em subempregos formalizados, menores, funkeiros, vândalos, sem caráter, deficientes”... E é de quem teve sua subjetividade, integridade e humanidade roubada que qualquer mudança significativa poderá eclodir. Porque qualquer mudança que seja protagonizada por quem diz “Direito dus Mano” ou “Direitos Humanos para humanos direitos”, jamais terá o objetivo de atingir a massa, será sempre uma mudança de cima para os de cima.
"Rap e compromisso" não se restringe a música, diz respeito a um ideal, a um proceder entre manos para manter esse ideal a frente, esse ideal e a luta contra o sistema, não conduzindo os oprimidos, mas COM eles, elas e elxs nessa caminhada emancipatória. Por isso, ser a favor dos direitos dos nossos manos, minas e monas e contra todos que tentam usurpá-los deve ser uma missão cotidiana. E se sabemos que Direitos Humanos são irremediáveis, mas não suficientes, é como parte desse exército de excluídos que teremos alguma chance de realmente desviar os rumos dessa tragédia programada.
Antes
de finalizar, retomando a pergunta inicial deste texto, tentei deixar
evidente que com oprimido que reproduz a expressão burguesa “Direito dus Mano”, nossa atuação político-pedagógica é a de conscientização, aquilombamento e "inflamando pensamentos insurgentes no gueto", se fazendo presente de modo crítico, descolonizado, horizontalizado e anticapitalista.
E,
por fim, no que diz respeito ao que fazer com a burguesia que produziu
tal expressão e coloniza a massa de oprimidos com ela, resta-nos apenas,
única, somente, exclusivamente a ação direta combativa, nada mais.
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Texto escrito por:
Thiago Augusto Pereira Malaquias
Militante Hip Hop e Psicólogo - CRP.13-9871
Contato: tapm83@gmail.com