Se tem uma coisa na qual o Brasil é especialista é em matar negros e pobres. Há mais de cinco séculos o país vem aperfeiçoando a prática. Se antes os negros escravizados eram coisificados pelo colonizador, se eram tratados como ferramenta de trabalho para produzir lucro e tinha um preço no mercado, pouca coisa mudou. Ainda persiste na sociedade o extermínio, a negação da humanidade roubada pela escravidão seja através da segregação dos espaços, da superexploração da nossa força de trabalho em postos subalternizados, da criminalização dos nossos irmãos e irmãs, dos estereótipos presentes no imaginário ou dos rótulos que nos colocam.
A religião do colonizador sempre esteve presente, seja com os jesuítas promovendo a desafricanização e a desindianização ou através das igrejas neopentecostais que inundaram as quebradas. Quadros famosos que retratam a colonização no Brasil mostram a catequização, o epistemicídio, hoje a internet registra as igrejas lotadas de pobres, enquanto os pastores transmitem em suas residências o culto através de uma live. A busca pela humanização ainda nos faz ajoelhar pelo reconhecimento de entidades supramateriais que, supostamente, têm o poder de punir ou salvar. A violência que desumaniza e a religião que oferece a salvação estão de mãos dadas.
Isso reafirma o que disse o sociólogo Ianni, ao considerar que a violência colonial se sofisticou com o desenvolvimento social brasileiro. Quer dizer, existem muitas outras estratégias - inclusive mais sutis - para garantir a manutenção da hierarquia social. Não é necessário sair matando negros, basta não assegurar direitos básicos como saúde, moradia e educação. É o que se denomina “Estado Penal”, quando o Estado destrói a assistência social e incrementa seu poder de letalidade no setor da segurança. Ou, em outras palavras, quando o Estado fecha escolas e abre presídios. E por que não quando fecha hospitais de campanha e abre valas no cemitério público, demarcando seu caráter necropolítico. Mesmo com tanta sofisticação na arte de fazer e/ou deixar morrer, a violência é tamanha que entram em uma quebrada, mancham as ruas de sangue e saem com dezenas de corpos em lençóis, sob a espetacularização da mídia e sob os aplausos do público. O ser humano é descartável no Brasil, literalmente.
Como escreveu Pedro Costa, professor do curso de Psicologia da Universidade de Brasília - UnB, a morte é uma força produtiva vital no desenvolvimento do capitalismo dependente e periférico brasileiro. Isso nos diz que a morte não gera prejuízos, pelo contrário, a morte alimenta uma cadeia produtiva altamente rentável para o capitalismo. O aprisionamento em massa e genocídio da juventude negra e pobre são expressões do caráter racista mortífero que sempre se fez presente. Então, se no século passado Darcy Ribeiro chamou o Brasil de “moinho de gastar gente”, hoje o rapper e escritor Eduardo Taddeo chama de "fantástica fábrica de cadáveres”.
Para se ter uma noção, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, só no ano de 2019, das 6.357 vítimas de ações policiais, 79,1% eram negros, 74,3% jovens até 29 anos e 99,2% homens. Basicamente as mesmas características das vítimas da chacina do Jacarezinho, sendo que todos eram negros e em sua maioria jovens, com idades inferiores a 29 anos. Já em 2020, diariamente, o Monitor da Violência do G1 registra que a polícia matou em média 3 pessoas no Rio de Janeiro, uma taxa de 7,1 a cada 100 mil habitantes [a taxa em São Paulo é de 1,8]; no Brasil ela matou cerca de 16; e mais de 120 pessoas foram vítimas de homicídio. Essa violência colonial cujo porta-voz é a polícia já é naturalizada, ocorreu durante toda a pandemia, foi noticiada em um dos maiores veículos de comunicação do país.
A nossa “Era das chacinas”, assim como nossas “Masmorras dos tempos modernos” não são sequelas do sistema capitalista na particularidade do Brasil, mas a própria configuração de um país construído com suor e sangue de negros e dos povos originários. A morte ainda é a nossa forma de participação no capitalismo globalizado. E é notório que não se trata do sangue de qualquer negro, ontem e hoje existe uma uma fixação em negros[as] na juventude e na fase adulta, quando há maior produtividade e força para o tipo de trabalho demandado neste sistema, pois quando crianças são adestrados[as] para tal trabalho e na velhice, caso consigam chegar nela, acabam sendo completamente abandonados[as] a sorte quando muito com uma pensão miserável.
O que tudo isso nos revela? Uma chacina com 28 homens negros assassinados, em sua maioria jovens, é parte de um único processo. As chacinas são as vitrines da nossa fábrica de cadáveres, onde as elites subalternas expõem “a carne mais barata do mercado", uma de suas mais tradicionais especialidades. Desumanizar a pessoa assassinada utilizando o rótulo de “bandido”, faz com que as pessoas não tenham que lidar com o fato de que elas aceitam a matança de jovens homens negros, ou seja, que são racistas. Dizer que o “bandido” tinha antecedentes garante uma pena de morte legitimada pela própria população, que por sua vez aprendeu com o colonizador que violência é algum tipo de solução. Para a manutenção de seus privilégios a elite brasileira recorre à violência contra seu povo, outrora recorre à religião, para reforçar a violência e anestesiar as massas em êxtase, fornecendo-lhes um perdão dissimulado e alívio psicológico.
Por fim, temos que, depois do sangue de Jesus espirrado na parede, de hora em hora em todas as emissoras, rádios e redes sociais convocam uma missa jornalística policialesca, isso, para atolar na goela dos brasileiros e brasileiras uma tonelada da "hóstia da ficha criminal". Afinal, depois da violência praticada, para prosseguir com o projeto colonial de extermínio sócio-racial: “recebeis o corpo de Cristo que livrais-vos da culpa e dos pecados do genocídio”.
Texto escrito por:
Thiago Augusto Pereira Malaquias
Militante Hip Hop, Educador social e Psicólogo [CRP.13-9871]
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