Dia 24 de dezembro, em plena ceia de natal, o site Alma Preta publicou uma matéria um tanto indigesta para quem acredita que o Hip Hop pode ser uma arma revolucionária. A matéria tem como título “Com poesia recitada por Djonga, Coca-Cola lança campanha ‘Abertos pro Melhor’”. Trata-se de mais uma daquelas campanhas publicitárias para a Coca reafirmar sua posição no mercado, desta vez atrelada à ideia de representatividade, nos alertando para um movimento de captura da pauta antirracista. E o Djonga, que acabou de sair de uma polêmica relacionada à participação em um evento lotado durante a pandemia, já vai entrar em outra treta?
Segundo a matéria, para se despedir de 2020 e saudar 2021, a empresa lança o filme ‘Poema’, que “dá início a uma ação internacional que propõe consumidores a refletirem sobre novos valores e atitudes”. Ao explicar o objetivo da campanha, a diretora de Marketing da empresa comentou: “A proposta da marca é recebermos 2021 de uma maneira diferente: é um convite para que cada um faça suas reflexões individuais, que tantos de nós tivemos durante 2020. Analisar quais hábitos devemos manter nas nossas vidas e quais devemos abandonar. Reconhecendo o valor das pequenas coisas, buscando mudanças e valorizando a beleza do cotidiano. Tirar as ideias do papel e transformar em atitude”.
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A declaração da diretora de marketing se assemelha àquelas promessas que a gente faz dizendo que depois do réveillon, no dia 1 de janeiro vamos começar uma fazer dieta ou parar de fumar. E essa campanha é considerada pela diretora de marketing uma “mensagem de positividade e otimismo num tom esperançoso que tem os contornos da voz de Djonga”. Ou seja, a parada é muito mais pesada, parece promessa de prefeito que faz comício com show de RAP, diz que após ser eleito vai construir uma área de esporte, posto de saúde e escola no nosso bairro, mas depois de eleito nunca mais aparece na quebrada. Ou promessa de patrão que diz para você trabalhar no fim de semana e que no início do mês ele acerta as contas, mas no início do mês ele desconta dois dias que você chegou atrasado e ainda não paga sua hora extra. É tudo blefe!
Não existe o objetivo de julgar nenhum/a rapper - o que não adianta
porra nenhuma, porque definitivamente não existe vinculo entre “artista”
e “fãs”. Até porque, se depois de tantos debates sobre a relação do RAP com o capitalismo isso ainda acontece, a última coisa que espero com minhas palavras é atribuir qualquer espécie de esperança, fé ou confiança na conduta de qualquer pessoa elevada ao posto de representatividade no interior da mídia hegemônica por seguir a tendência de obedecer o capital. É sem aplausos para quem dança conforme a música do opressor.
Apesar do site Alma Preta ser uma fonte confiável e de total
credibilidade, não será sobre a matéria ou sobre o Djonga que o texto
tratará. A notícia e o artista são apenas pontes que nos levam à
reflexões sobre posicionamentos políticos dentro do Hip Hop. O que
interessa aqui é problematizar alguns pontos sobre as posturas políticas no Hip Hop, e,
obviamente, não passar pano para multinacional. Portanto, cabe refletir: o que está em jogo quando um/a rapper com toda sua banca de crítico/a que combate o sistema aparece em um comercial de televisão, em horário nobre, ao lado de um símbolo do capitalismo ocidental convidando "os consumidores da marca a pensarem sobre novas possibilidades e arranjos em um contexto de crise sanitária”??? Será que o sistema de saúde, o saneamento básico, as possibilidades de isolamento social e a condição de trabalho serão melhorados visando a redução de mortes de negros/as e pobres por Covid-19 em 2021???
O império do opressor
O primeiro ponto diz respeito à Coca-Cola. De modo breve, porque com o Hip Hop chegando aos seus 50 anos de existência, debater isso é como nunca ter ouvido ou compreendido músicas como “Televisão”, do Face da Morte com o Gog, ou “Sem essas nunca nessas”, do SNJ com o Armagedon.
O império da Coca-Cola se caracteriza como um oligopólio com mais de 500 produtos atuando em mais de 200 países. Chegou no Brasil na década de 40, durante a segunda guerra mundial através de soldados americanos em uma base militar que o governo brasileiro, sendo que a primeira fábrica, em Recife, visava atender às Forças Armadas dos Estados Unidos. A magnitude do poder da marca é devastador, só aqui no Brasil existem mais de 200 marcas de refrigerantes, muitas delas não chegam a se expandir sequer além dos limites de um estado. Já a Coca está em todos os lugares, lares e mesas, em qualquer esquina, seja com seus produtos ou com sua publicidade, cuja estratégia criou novos padrões consumistas.
Se tratando de seu teor nutricional, a ingestão frequente de Coca-Cola está tem relação direta com problemas de saúde corriqueiros na cartela de doenças do brasileiro. O consumo pode estar relacionado ao aumento de casos de crianças com obesidade e diabetes, uma vez que a quantidade de açúcar e sódio presentes em sua fórmula está bem além do que e recomendado, segundo o instituto Oswaldo Cruz, que afirma que a quantidade de açúcar recomendado para crianças e adolescentes não deve exceder 25g por dia, e uma lata de 350ml contém 37g. A bebida sempre foi alvo de estudos que avaliam seu potencial cancerígeno associado a fatores como tabagismo e má alimentação. Sempre foi polêmica no que diz respeito à saúde.
Atualmente, a marca explora mais de 100 mil trabalhadores/as pelo mundo, sem contabilizar os terceirizados, e acumula uma riqueza de mais de 200 bilhões de dólares. Para finalizar, só para se ter uma ideia, a bebida foi proibida na União Soviética até 1985, sendo permitida somente após um acordo de venda de vodca para o ocidente. A Coca-Cola, que é tida como um símbolo do capitalismo ocidental, agora tem utilizado ídolos do RAP brasileiro para reafirmar sua posição no mercado.
O espelho do oprimido
O segundo ponto se refere à ideia de representatividade, que tem a ver com aquele ou aquela que representa politicamente os interesses de um grupo, de uma classe ou de uma nação, considerando-se a história de colonização e opressão que silencia as chamadas “minorias” [o que é diferente do conceito de lugar de fala, mesmo que com ele se relacione]. Representatividade é algo legitimo e relevante na construção de uma sociedade igualitária, na luta dentro do campo institucional, no processo de resgate e preservação histórica, de construção da identidade e da própria subjetividade. Todavia, essa questão pode ser bem problemática, principalmente quando há uma intensa competitividade e quando muitas dessas representatividades não se garantem na construção de uma consciência de classe libertária, pelo contrário, reproduzem uma consciência liberal. A representatividade pode não representar os interesses de um grupo, e exemplos também não faltam.
A empresa se vale de sua associação a Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial.se descreve como sendo “um movimento formado por empresas e instituições comprometidas com a promoção da inclusão racial e a superação do racismo”. Entre os 73 signatários da Iniciativa estão Petrobras, Magalu, Ambev, Petrobras, Google, Banco do Brasil, Itaú e outros, inclusive o Carrefour que foi “desligado temporariamente” do grupo apos o assassinato de João Alberto. Se por um lado o trabalho perpetrado por todo e qualquer movimento em defesa dos nossos direitos seja válido e imprescindível, por outro lado as grandes marcas se valem dessa associação para esconder o fato de que o racismo está na estrutura social, na posse dos meios de produção e da propriedade privada, no acúmulo e concentração de renda, na exploração da força de trabalho e maximização de lucros. Com tais campanhas e associações as empresas sugerem que basta colocar alguns/as negros/as em um posto de poder que o racismo será extinto automaticamente.
Mesmo que se alcance a diversidade étnica no efetivo de trabalhadores, o racismo está na estrutura capitalista e habita o imaginário das pessoas. Dos mais de 100 mil funcionários, quantos conseguirão construir uma empresa capaz de concorrer com a Coca? Trocar os personagens é uma ideia cativante, aliás, uma ação necessária hoje, porém se não trocarmos o roteiro, o final da história será sempre o mesmo: ricos mais ricos, pobres mais pobres, racismo, patriarcado, discriminação, todas as merdas continuarão. Será que precisaremos entregar um/a Djonga por bairro para termos uma melhoria na infraestrutura na quebrada de cada um de nós? Haverá espaço para tantos/as Djongas no mercado? Estão preparados/as para dar atenção para todos/as os/as Djongas que estão por vir?
Na realidade, empresas como a Magalu ganham mais publicidade de forma muito mais barata quando estoura uma polêmica sobre racismo nas redes sociais, do que quando paga comercial no intervalo do futebol. Na internet viraliza, vira pauta, gera visibilidade para a empresa, não para funcionários/as negros/as. Quantos funcionários da Magalu poderão construir, com o salário que recebem na empresa, um negócio no mesmo ramo que chegue ao ponto de ser concorrente dela? Quantos dos mais de 100 mil trabalhadores explorados pela Coca terão a possibilidade de criar uma marca de refrigerante e exportar para outros países? Por fim, essa é a representatividade que está disponível para nós: ocupar o lugar de um urso branco de computação gráfica nas festas de fim de ano.
Os posicionamentos político no Hip Hop
Tudo isso para chegarmos ao terceiro e último ponto: a reflexão acerca de posturas políticas, politizadas e politizantes dentro do Hip Hop.
Poderíamos citar o nome de muitas referências que, mesmo ocupando espaços de destaque, não deixaram de fazer prevalecer seus ideais políticos humanistas mais profundos em detrimento das exigências da mídia, do público, da fama e da própria liberdade. Uma dessas referências é o lutador Muhammad Ali, que mesmo estando no ápice do estrelato se negou a lutar na guerra do Vietnã. Em consequência teve cassada sua licença para lutar, seus cinturões retirados, foi condenado por se recusar a servir seu país e ficou quatro anos sem lutar, isso enquanto enfrentava todo sistema de justiça e fuzilamento midiático. Outra referência é a cantora Nina Simone, que conta sempre ter sido vítima de racismo, de ter crescido em um ambiente onde não se falava abertamente sobre isso exatamente pelas represálias. A história de Nina mostra como o mercado da música foi capaz de minar a carreira da cantora militante dos direitos civis após ela começar a trazer em suas músicas e show todo conhecimento adquirido a partir do contato com o movimento negro. Para quem ainda não entendeu o bagulho, o sistema destrói e mata quem se opõe às sua reprodução. Insurgir contra o sistema tem um preço.
Filmes: "Ali" e "What Happened, Miss Simone?" |
No Brasil a parada fica ainda mais complicada. Mas uma coisa é certa, no nosso país a cultura Hip Hop e o RAP surgiram em negação a tudo aquilo que representasse política e ideologicamente a burguesia nacional. A ética da periferia e a subjetividade engajada e politizada modelada pelo Hip Hop são altamente influenciadas pela estética dos Racionais Mc’s, e o fato do grupo negar convites da Globo durante muitos anos foi um motor que manteve toda repulsa e revolta do Hip Hop contra as instituições racistas burguesas. Isso contaminou outros grupos que fizeram o mesmo em sua trajetória. Isso é tão forte que até hoje muita gente não perdoa o grupo pela participação no programa do Luciano Hulk, na Globo. Tão forte que tem gente que não perdoa até hoje o Xis por ter participado da Casa dos Artistas. E sobre o Mv Bill no Faustão, quantas críticas o cara recebeu? Tudo isso revela o caráter contestador que existe no Hip Hop mesmo quando a mídia tente tornar nosso som inofensivo e essas representatividades capazes de transformar revolucionários/as em consumidores/as adestrados/as.
Eduardo Taddeo, ao responder uma pergunta sobre o fato de ter negado convite de Globo comenta algo que merece atenção. Ele diz que rapper que busca estar na Globo, no SBT, etc., no fundo já não está satisfeito com o público para o qual começou a cantar. Ou seja, quando um/a rapper busca outros espaços é porque tem outros interesses que não condizem mais com os interesses daquele público da quebrada que escuta e vive as letras de RAP. Nesse caso, podemos entender que o/a rapper já não é um/a combatente que está cantando pelos ideais de transformação social, e sim se tornando uma mercadoria que produz mercadorias que atraem consumidores. Dessa forma, não é a demanda da periferia que influencia a postura da representatividade encarnada na imagem de rapper, mas a necessidade vital que o mercado tem de criar mercadorias e um público consumidor. Só assim o capitalismo sobrevive, se reinventando, capturando tudo que possa se tornar mercadoria e que tenha potencial para representar um nicho de mercado a ser explorado.
Essa lógica liberal, do empreendedorismo, da inserção através do consumo, da conformação da revolta nos moldes da cidadania burguesa tão presente no discurso dos rappers e grupos mais consagrados tem um problema, ilude a periferia que passa a acreditar que vitória é só estar na Globo, que vitória é só ter milhões de visualizações, que vitória é só empreender algum negócio, que vitória é ter bens de consumo, achando no extremo de acreditar que a favela venceu. Quando um/a rapper abraça uma marca símbolo do capitalismo, ele/a nos passar a mensagem de que os interesses de trabalhadores/as da periferia não importam, diz na nossa cara que os valores humanos a serem seguidos são os dos playboys herdeiros do capitalismo. A postura política de um/a rapper sempre é explícita: ou ele/a caminha ao lados dos oprimidos e em função deles, com a missão de derrubar o sistema, ou então ele/a abraça capitalistas age como pastor dopando ovelhas com publicidade e guiando para o abate.
É um erro gravíssimo quando uma pessoa eleita representatividade não busca o reconhecimento dos seus iguais, mas dos seus inimigos mais abomináveis. Pois todo rapper que negou a mídia hegemônica ganhou a maior moral, ganhou aplausos, foi admirado e foi com essa postura política que quem carrega um microfone em punho passou a ser denominado “voz da favela”. Racionais Mc 's negou, Eduardo Taddeo negou, o GOG já disse ter negado diversos convites da Globo. Muitos outros que eu peço desculpas por não citar também negaram e merecem o mesmo reconhecimento. Quem dança a música do opressor quer aplauso dele, não o nosso. E se algum/a artista não se sente realizado/a com o respeito e a admiração do público do Hip Hop, está atrás de reconhecimento de quem?
A velha promessa
Portanto, a intenção da marca, da campanha e do rapper é levar consumidores - mais conhecidos como pessoas - a pensarem “quais hábitos devemos manter nas nossas vidas e quais devemos abandonar''. Nesse sentido, quais sugestões seriam mais propícias do que: desligar a tv e cuidar das informações que a mente absorve; parar de beber refrigerante e cuidar da melhor alimentação, e; além de simplesmente ouvir RAP, que tal refletir criticamente sobre os rumos da luta política travada pela cultura Hip Hop?
Até porque, todo mundo que um dia já prometeu fazer dieta ou parar de fumar após o réveillon sabe que esse papo é lero-lero.
Fontes:
Link para o texto de Lenne Ferreira, publicado no site Alma Preta:
Breve histórico da Coca-Cola:
Sobre consumo de açúcar:
Eduardo falando sobre negar convite da Globo:
GOG, ao rejeitar convite da Globo::
Sobre sujeito e subjetividade liberal:
Djamila RIbeiro - O que e lugar de fal?:
Spartacus e Jones manoel - Crítica ao lugar de fala: