PEDAGOGIAS DOS OPRIMIDOS: UM VELHINHO TERRORISTA, 4 PRETOS PERIGOSOS E MILITANTES CHATOS PRA CARALHO

Já na década e 80, em um encontro que reuniu grupos de jovens e de militantes da esquerda que realizavam trabalhos de base, Paulo Freire, obstinado a trocar ideias sobre sua pedagogia do oprimido, disse que no Brasil estava cheio de gente que "falava PARA o povo", ao invés de gente que "falava COM o povo". Ele até tirou uma onda com a garotada: "não sei como os jovens da esquerda não perceberam esse 'treco' até hoje". Disse 'treco' porque isso é uma coisa muito simples, muito básica em sua metodologia. Afinal, pense em qualquer problema que existe na sua quebrada... você vai conseguir transforma-lo se não consegue conversar COM as pessoas? O que você vai fazer sem o diálogo com seu vizinho? Ou, ele escreveu em Pedagogia do Oprimido: “Como posso dialogar, se me fecho à contribuição dos outros, que jamais reconheço, e até me sinto ofendido com ela?”.

Freire considerou que a esquerda não estava sabendo escutar o povo - dar ao outro o direito à palavra -, e que na práxis estava chegando nos territórios sem respeitar seus costumes, desconsiderando os saberes das pessoas com tom de autoritarismo, esquecendo que “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão”; entre outras considerações que dizem respeito àquele contexto histórico e político. O tiozinho barbudo e careca foi considerado terrorista só porque, quando trabalhava com os pobres, alfabetizava e politizava muita gente e em pouco tempo [pô, o cara não tinha culpa se depois da conscientização libertária a galera percebia as opressões e fazia greve, deixando os patrões com o cu na mão].

É aqui que os 4 pretos mais perigosos do Brasil roubam a cena. Sobrevivendo no Inferno, com todo seu potencial catalisador de revoltas, com toda sua complexidade para estimular a autoconsciência da periferia e ao mesmo tempo com toda simplicidade e humildade para lidar com ela, com todo seu caráter contestador do sistema é a pedagogia do oprimido-favelado que mais representa a importância de algo que parece ser tão simples: a diferença entre “falar PARA o povo periférico” e “falar COM o povo periférico”. 

 


Quando os Racionais Mc’s colocaram uma cruz, encarnaram um pastor-marginal, fizeram um culto, recitaram salmos e apresentaram testemunhos, quando trouxeram nas letras e reflexões vários outros pontos de vista existentes na periferia, eles abandonam o tom autoritário presente nos primeiros sons como "Negro limitado" e "Mulheres vulgares", e passam a falar de igual para igual. Até chegar na frase "ninguém e mais que ninguém", muitos erros foram cometidos, os próprios rappers assumem - mas isso é outro assunto. Em vez de discursar para a periferia, nesse álbum os rappers quase saem de cena para dar lugar aos discursos da periferia. O que aconteceu foi um processo de aproximação, de escuta, de observação, de diálogo com o povo da periferia. O grupo passou de “falar PARA a periferia”, para “falar COM as periferias”. Não foi dom, apesar das habilidades dos caras. Foi um aprendizado, foi politização, foi o desenvolvimento de um senso crítico, de tomada de consciência sobre a importância e da potência da voz de cada periférico quando são ecoadas juntas, foi compreensão sobre a realidade histórica e social do país. Eis a importância de compreendermos e darmos valor a pequenos detalhes, como o simples ato de dialogar.  

Naquele encontro Freire também falou bastante da religião. Para ele, qualquer pessoa que queira participar da transformação de uma determinada realidade deve partir de tal realidade que vai ser transformada. O que ele quis dizer com isso é que para nós da periferia não é a teoria que vai dizer como as coisas devem ser feitas, mas sim a prática que vai dizer se uma ou outras teorias são válidas. Por isso ele fala tanto em “práxis”, porque não adianta ter um discurso progressista e atitudes reacionárias. Não adianta alguém falar em igualdade, liberdade e respeito se esse alguém não consegue sequer respeitar algo tão profundo como a fé e a espiritualidade de uma pessoa, grupo ou comunidade. E isso não significar ser complacente. Não quer dizer que devemos nos calar se alguém diz que acredita ser pobre porque assim que Deus fez. O que velhinho terrorista quis dizer foi que o diálogo é capaz de trazer à tona as questões históricas, políticas e econômicas que fazem as pessoas serem pobres.

Quantas vezes você já se deparou com pessoas que sequer te escutam, mas acreditam fielmente saberem qual seu problema e qual seria a solução? São pessoas que “falam PARA a gente”. E em tempos de individualismo essas pessoas se multiplicam como praga. Quem não escuta só consegue "falar PARA". Enquanto que "falar COM" depende que a gente escute as pessoas. Não escutar e impor para o outro aquilo que você acredita que ele precisa é uma conduta de colonizador. Na medida que se permite que o outro tenha a palavra, se pode ter e/ou exigir a palavra para si. Nesse processo de escutar a religião do outro reside a chance de o outro escutar minha posição frente ao que foi dito. “Em algum momento esse papo de luta de classes vai chegar”, assim Freire comenta. [Observação: Aqui falamos de lugares onde a religião exercia grande influência no povo, como no campo, não dos centros urbanos onde as pessoas não acreditam na religião e utilizam dela pra justificar suas posições políticas].

Quando Racionais Mc’s cantou "Já ouviu falar de Lúcifer? Que veio do inferno com moral, um dia? No Carandiru, ele e só mais um, comendo rango azedo com pneumonia", ele faz o maior processo de desalienação que podemos imaginar, e fez isso da forma mais ética possível. O trecho retira a causa das mazelas sociais do âmbito da religião e leva para o lado da política. As pessoas que acreditam que outras pessoas estão presas porque são guiadas pelo mal, ou porque são más por natureza, ou que tudo é assim por vontade divina passam a observar que entre elas e os deuses existe a sociedade, o sistema, o opressor. As pessoas continuam religiosas como de direito, mas agora elas sabem dos impactos da ação dos homens e são essas ações que devemos combater.

A rapaziada se apropriou da linguagem das igrejas neopentecostais. Ao invés de chegar chutando a porta e criticando as crenças de pessoas humildes, sem correr o risco de gerar repúdio o grupo utilizou da linguagem, da simbologia e do discurso para ampliar seu poder de alcance, com isso subverteu a verdadeira intenção do sistema e suas instituições. Com escuta, diálogo, respeito, pesquisa, leitura, proceder, humildade, coletividade e descartado o antigo “tom professoral" [como Acauam Oliveira denomina na introdução do livro Sobrevivendo no Inferno], os 4 pretos mais perigosos do Brasil se tornaram os “intelectuais orgânicos” da periferia, como diria Gramsci.  

Para Gramsci, os intelectuais orgânicos são pessoas que pensam os problemas do trabalhador, que necessariamente possuem uma relação visceral com tais questões, que refletem criticamente as vivencias e contradições das classes subalternizadas, que são formados nela e por ela, por isso são pessoas incumbidas a caminhar COM seu grupo rumo a uma nova organização social livre da opressão do capital. Todavia, e sem generalizações, quando pensamos na atual militância da esquerda, a vemos sendo forjada no epicentro das mazelas sociais, ou geralmente são de aventureiros/as da pequena burguesia que largam tudo para viver o Negro drama? Quando ela alcança a base, quando bate de frente com pessoas reais, com necessidades reais, com qual tom geralmente ela se apresenta: na humildade ou com esse ‘tom professoral'? Falando PARA a periferia ou COM a periferia? Rola uma discussão daora ou é chato pra caralho?

Uma pedagogia para ser considerada do oprimido deve ser feita COM os oprimidos e PARA os oprimidos. Intelectuais orgânicos da periferia são como em um dos versos do Eduardo Taddeo: “Roubo dados sigilosos e injeto nos bairros pobres”, quer dizer, devolve os saberes para os trabalhadores e oprimidos, não entrega para o opressor manter seu domínio sobre os meios de produção materiais e simbólicos. A esquerda até hoje “fala PARA O povo”, não escuta e pouco dela eclode da base. O sistema é estruturado para impedir que a base alcance determinados postos de poder e quem vai ocupar, geralmente, teve acesso a outros meios e viveu em outra realidade, mesmo quando é da esquerda. Nisso vira e mexe surge uma nova denominação: "cirandeira", "punitivista", "pequeno-burguesa", "institucional", "liberal" e blá-blá-blá. São todas esquerdas que desistiram de combater o capitalismo em sua gênese, esquerdas destituídas de horizonte de superação desta estrutura social para emancipação humana. Se a esquerda estivesse na base, se formando a partir da base e almejando de forma consciente antagonizar com a classe dominante, não teríamos hoje as tais guerras de facções, teríamos a associação entre grupos armados revolucionários querendo lutar pela libertação de todos nós. Esqueceram os ensinamentos do tiozinho terrorista, e parece que o recado do Brown chegou muito atrasado.

Quem gosta de final feliz longe da realidade em que vivemos, pode finalizar aqui a leitura, porque os parágrafos que seguirão são para ir além do RAP que está na mídia. Este texto poderia terminar por aqui e ser utilizado para dar um "se liga" na esquerda, mas já que essa militância pouco se faz presente de fato nas quebradas, ela nem será mais citada. Esse texto deve servir de reflexão para nós da cultura Hip Hop.

Paulo Freire e Racionais Mc's, seus ensinamentos durante toda metade do século passado sobreviveram e se ramificaram por todos movimentos de resistência, mesmo que não saibam. Por isso, por todo Brasil existe grupos de RAP independentes, anticapitalistas e/ou insurgentes. Essa galera está trocando ideia com o moleque na esquina, com a professora do fundamental, com o tio no boteco, com a irmã indo para igreja, com o empresário que solicita motoboy, com o motorista de ônibus, com o comerciante, com morador de rua. Manos, minas e monas que, além do discurso potente contra o sistema, estão no front de batalha sem carregar bandeira de partido. E toda essa galera que bate de frente é invisibilizada pelos personagens endeusados pela mídia e pelo público do RAP nacional, que por sua vez tem apresentado a tendência de seguir o mercado.

Existem grupos anônimos que rejeitam convite para shows durante a pandemia mesmo necessitando do cachê, que distribuem álcool e mascara nas quebradas; existe parceiro que grava o som de um mano no estúdio dentro de um cômodo na própria casa, manas que se aliam para propagar conhecimento; vários periféricos e periféricas vendendo rifas na comunidade pra levantar bibliotecas; que se reúnem com moradores em associações de bairro, e por aí segue... São grupos que criam e colaboram com iniciativas que têm como pilar a autogestão, a cooperação, a solidariedade, a igualdade e, mais que isso, que sustentam o fundamento do combate ao capitalismo. Talvez seja essa uma das razões para esses grupos se manterem e serem mantidos à margem do Hip Hop, pois não reproduzem o discurso que a massa aprende a consumir. O RAP-mercadoria vende mais que um RAP-anticapitalista. São ações e ideias que representam uma verdadeira pedagogia do oprimido criada na periferia para a própria periferia, de forma coletiva e engajada, na contramão da tendência liberal que tem contaminado a cena.

Na verdade, o objetivo ao citar Racionais Mc’s foi especialmente nos trazer a essa reflexão acerca da potência que existe na periferia e que deixamos de apoiar na medida que damos ibope para artista. São outros tempos e que demandam mais combatividade do que nunca, e essa força está na base, nas ruas, nas esquinas, nas prisões, e não na mídia, nas festas, nos teatros, nos filmes e etc. A periferia tem sua pedagogia e pode desenvolver muitas outras, e assim o faz. Se hoje o RAP dos anos 90 é utilizado dentro de sala de aula, como até o Silvio Almeida e Djamila Ribeiro também já disseram ter feito. Isso e um desdobramento do trabalho de Freire e dos Racionais. Isso ainda e pouco perto do que é feito por aí e que não temos sequer o conhecimento por estarmos olhando para as estrelas do Hip Hop. Mas isso também quer dizer que a periferia descobriu sua pedagogia que serviu para sua própria sobrevivência e emancipação, portanto, devemos cobrar, mas não podemos esperar pelo governo, pela militância ou por artistas.

Para finalizar, o trecho de um texto do mano Hertz - pesadíssimo, diga-se de passem - me chamou atenção e me despertou dúvidas sobre a cena atual. Ao descrever suas impressões e reflexões sobre o filme do Emicida, Hertz Dias, que faz parte do Gíria Vermelha, em certo momento comenta que a burguesia não suporta ver os rappers "estreitando os laços políticos entre o palco e o público", e que isso é o que o Hip Hop fez de melhor, por isso rappers são mais cobrados que os artistas em geral. Isso me fez pensar bastante sobre ícones, ídolos e lideranças. Quando pensamos em eventos sendo realizados, gerando polêmicas e pedidos de desculpas, ou na ideia de inserção pelo consumo sendo popularizada mesmo com muita de gente querendo combater o capitalismo em sua raiz, será que realmente existe uma aproximação entre a “voz de quem não tem voz” e àqueles/as que não são ouvidos?

Então, como intenção não é oferecer respostas e sim deflagrar questionamentos, diante da importância de escutar os sofredores e sofredoras da periferia, para assim podermos agir COM eles e elas contra o sistema, se pergunte: as atuais letras de RAP que estouram na mídia falam da sua realidade ou falam sobre a realidade que o mercado consumidor quer ouvir? As "lideranças" ou “intelectuais” do Hip Hop têm sido capazes de absorver organizar a revolta da periferia e voltá-la contra o sistema, ou têm apenas discursado as opiniões da moda para o povo da periferia consumir?


Referências:
Antonio Gramsci. [1982]. Os intelectuais e a organização da cultura.
Paulo Freire. [1983]. Como trabalhar com o povo.
Paulo Freire. [1984]. Pedagogia do Oprimido.
Racionais Mc’s. [2018]. Sobrevivendo no Inferno.

Escrito por: Thiago Augusto Pereira Malaquias
Psicólogo formado pela Universidade Federal da Paraíba
Email. tapm83@gmail.com

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