BREAKING NAS OLIMPÍADAS: 'NEM TUDO QUE BRILHA É RELÍQUIA NEM JOIA'.

Na segunda-feira (07/12) Comitê Olímpico Internacional (COI) anunciou o Skateboarding e o Breaking como esportes olímpicos em 2024, que será sediana em Paris. Mas a consciência crítica que o Hip Hop nos injeta durante anos torna os questionamentos ao sistema nossa obrigação, sempre. Para nossa própria sobrevivência. Diante disso, as ideias presentes neste texto só tem um objetivo, que é deflagrar reflexões sobre os mecanismos de captura de elementos do Hip Hop pelo capital. Para isso recorreu-se à vivência, reportagens, livros e dissertações produzidas exclusivamente por membros do quinto elemento da cultura Hip Hop: o conhecimento.


Mas antes de entrar no assunto, devemos ter em mente que para o presente texto, parte-se do entendimento de que a mercadoria e a mercantilização são elementares ao funcionamento do capitalismo. Para sobreviver e se reproduzir o capitalismo transforma o trabalho e o resultado da produção humana em mercadoria. Na mercantilização, a mercadoria passa a ter outro valor, um valor ‘fantasmagórico’, ela 'adquire vida própria’, conforme palavras de Karl Marx, que, em “O Capital” (2013), chama esse processo de ‘fetichização da mercadoria’. Essa fetichização faz com que a mercadoria oculte a exploração do trabalho e, no nosso caso, o mais importante é entender que ela retira o poder do ser humano, tornando-o refém da mercadoria. Assim, se os homens tornam-se dominados pelas mercadorias que agora não são mais produzidas para nossas próprias necessidades, a mercadoria passa a ser mais importante do que o ser humano. Não é por acaso que durante a pandemia de COVID-19 as vidas na periferia importaram menos que a economia, pois quanto mais valiosas são as mercadorias, menos importante torna-se a vida dos homens. 

Quem andou de skate na década de noventa sabe o que era ser skatista. Era ser chamado de vagabundo maconheiro. Havia uma enorme estigmatização. Não bota fé? Procure o filme "Kids", e perceba a visão da sociedade sobre os jovens do skateboarding. Isso mudou à medida em que o esporte foi se popularizando e quando os políticos descobriram nessa juventude um nicho eleitoral. Campanhas para construção de rampas de skate nas praças foram realizadas e hoje muitos bairros possuem uma pista. Antigamente a sociedade não parava no domingo para ver skatista, só passou a parar quando viu a mega rampa do Bob Burnquist com renomadas marcas patrocinadoras passam a promover grande$ evento$. Ou seja, o preconceito foi reduzindo proporcionalmente à captura do skateboarding pela grande mídia, e quando começou a causa impacto na economia. Apesar do Skateboard fazer parte da cultura de rua, ele não será o foco das reflexões que serão feitas. Mas a partir daqui podemos transportar para os outros elementos a cultura Hip Hop esse entendimento sobre o mecanismo de captura do sistema.

Vejamos o pixo e o graffiti. Como a sociedade brasileira enxerga o pixador? Como vândalo, marginal e vagabundo. Aliás, isso está na lei e no imaginário da sociedade. É por isso que foi admirável a atitude do Cripta Djan e outros pixadores que invadiram e tumultuaram a Bienal Internacional da Arte de São Paulo em 2008. Qual o argumento do mano e da rapaziada? A apropriação da arte, a fetichização, a mercantilização e a consequente retirada do caráter contestador e transgressor do pixo em detrimento da elitização do graffiti. Assim, primeiro nos rotulam, nos criminalizam, nos aprisionam (como fizeram com o GOMA) e depois pegam nossa arte marginal e transformam em produto vendável, vazio e o mais revoltante, pelo lucro. Eles ficam a arte e nós ficamos com a contravenção.

Não muito distante disso, outro fato me fascina. O do grafiteiro Blu, da Itália. Há um político italiano que na década de de 70 e 80 propôs a criminalização do pixo e do graffiti no país, anos depois o mesmo político começou a se interessar em fazer exposições de arte urbana em museus. Buscando evitar que seus enormes murais de teor extremamente críticos fossem capturados e usados para encher bolso de burguês, Blu começou a destruir seus murais espalhados pelo país. Quebrou paredes, pintou de preto e a cada momento desses era realizado um grande evento. O grafiteiro transformou a destruição de suas obras de arte em algo muito mais potente, praticamente em um manifesto contra o capital. Inúmeras pessoas paravam para ver a destruição, bandas tocavam músicas, tiravam fotos e em um clima de tristeza, afinal, estavam destruindo uma obra de arte. Esse ato do Blu foi tão forte quanto o próprio ato de grafitar protestos. A destruição pode ser criadora.

Antes e depois da "destruição" dos murais do Blu

Arthur Moura analisou, em sua dissertação de mestrado intitulada “O Ciclo dos rebeldes: processos de mercantilização do rap no Rio de Janeiro” (2017), os atravessamentos políticos, econômicos, culturais e principalmente a mercantilização do Hip Hop. Tomemos emprestadas quatro reflexões notáveis de seu estudo para exemplificar alguns dos impactos do processo de captura do RAP pelo capitalismo. Primeira: a fetichização dos rappers é forjada em uma ideologia que torna o rapper um produto em função do mercado, uma ideologia que reproduz relação de domínio e poder. Segunda: houve um movimento de docilização das narrativas do RAP para que ele fosse absorvido pela mídia hegemônica, pois o público não consumiria discursos de violência. Terceira: o entretenimento é uma forma de alienação, pois transforma “tempo livre” do trabalhador em tempo de consumo, assim, o capitalismo necessita descaracterizar a imagem do rapper e do RAP para que estes possam ser consumidos pela massa enquanto meras mercadorias fetichizadas, ou, que não necessariamente servem às necessidades humanas. Quarta: todo esse processo permitiu a entrada de discursos reacionários. Essa quatro reflexões demonstram como a captura do RAP esvaziou as suas principais lutas. 

E por fim chegamos ao Breaking, agora considerado um esporte olímpico. Pensar nessa dança urbana, é pensar em cultura Hip Hop, e para entendermos essa captura do capitalismo precisamos voltar um pouquinho na história do surgimento do Breaking. Nesse caso, a abordagem do rapper Aborígine, em seu livro "O Hip Hop em mim" (2017) é muitíssimo pertinente. Segundo o mano, as danças urbanas - ou danças de rua -, dentre elas o Breaking, têm suas origens no período da grande depressão de 1929 nos EUA. Ele segue explicando que com a crise do capitalismo, vários empreendimentos como teatros, estúdios, boates, danceterias e discotecas foram fechadas, forçando os dançarinos e dançarinas irem às ruas exibirem suas performances em troca de gorjetas. Dessa forma, "o breaking nasce como uma dança de resistência" (Aborígine, 2017). Até que estourou na mídia estadunidense, alcançando o Brasil e influenciando o movimento que se formava nas periferias de São Paulo.

Se nas guerras entre gangues nos EUA o Breaking substituiu as armas por arte, no Brasil o ele também foi de suma importância para a formação do Hip Hop. Para Spensy Pimentel, autor de “O livro vermelho do Hip Hop” (1997), essa importância consiste no fato de que a organização do movimento de rua e dos elementos do Hip Hop surgiu exatamente por causa da marginalização dos b.boys, e a partir disso foram criadas também as primeiras organizações. Spensy Pimentel explica que “existia uma dupla perseguição: de um lado, os policiais, incentivados pelos comerciantes do centro da cidade, que se sentiam prejudicados com as apresentações dos jovens; de outro, as equipes de baile tentavam impedir o break nos salões, porque a maioria dos jovens negros ainda curtia o funk” (p.19). Nota-se com isso o que não é nenhum segredo: todo Hip Hop é uma manifestação artística, portanto, política e que eclode em contextos de opressão se levantando contra ela. Guerreiros e guerreiras morreram pelo Hip Hop nas mãos do sistema. Vale lembrar do caso do Jailson, o grafiteiro Scank.

Jailson Galdino de Souza Santos - Scank

Nessa treta toda, o que os elementos que formam o Hip Hop têm em comum é o fato de que foram alvo de discriminação, passaram por um processo de absorção pela sociedade e se tornaram mercadorias. Para quem é da cultura Hip Hop, isso significa muito mais que a apropriação do Hip Hop pelos capitalistas. É normal dizermos que o Hip Hop salva vidas, e ele salva! Então significa ter ou não ter a possibilidade de nos mantermos vivos. O Hip Hop era a ferramenta pela qual resolvia-se tretas de bairro não mais através da violência, mas pelo pixo, pelo graffiti, pelas rimas e pelo breaking. Esse Hip Hop, durante anos foi discriminado. Mas quando favorece a economia o discurso muda… o discurso de aceitação muda, mas a prática de exclusão, aprisionamento e extermínio continua a mesma. Como cantou GOG: "Tudo igual, só que de maneira diferente; A trapaça mudou de cara, segue impunemente".

Se quem domina é o mercado, você pode fazer um show lotado e bem estruturado durante a pandemia, mas não pode rimar no metrô para ajudar na condução até o trabalho. Inclusive, os atletas do Breaking receberão medalhas, fama, dinheiro. Enquanto isso, a molecada que passa algumas tardes em ONGs participando de oficinas de Hip Hop será difamada até mesmo pela boca de pretendentes políticos. Isso coaduna com as palavras de Arthur Moura que, ao tratar da relação do RAP com o mercado, comentou que "esse profissionalismo não existe fora dos ordenamentos que estruturam as relações de poder e domínio. Pelo contrário, garante as disparidades sociais" (Moura, 2017, p.64). Basta lembrarmos do vacilão do “Mamãe falei”, que se revela como ódio de classe e raça, como bem analisado por Allisson Tiago em um de seus artigos publicado para o Blog Hip Hop Sem Maquiagem. 

Agora os b.boys e b.girls de rua serão vistos como insuficientes em comparação a quem recebe para treinar 10 horas por dia, em uma academia repleta de professores e técnicos. Pode ser que essa inserção do Breaking nas olimpíadas intensifique essa profissionalização, atuando como um processo seletivo de atributos individuais que são constituídos dentro de determinadas condições materiais. Em outras palavras, todos têm a mesma capacidade, mas quem tem mais possibilidade se chegar às olimpíadas, quem treina aos fins de semana ou quem trabalha treinando em academia e com professor? O que o Estado tem oferecido para a periferia para chegarmos um dia as olimpíadas? No fim das contas, quem mais ganha com isso? 

Antes de finalizar, é imprescindível fazer algumas observações: A. o texto não pretende criticar b.boys, b.girls, rappers, grupos ou pessoas; B. com o título do texto não se busco reduzir a importância da inserção do Breaking nas olimpíadas, nem a luta de cada um que têm o Hip Hop na veia, a intenção foi apenas provocar; C. o texto não almeja esgotar o tema, nem citar todos os detalhes dessa problemática; D. se o Hip Hop lutou por essa inserção e reconhecimento social, atingiu, e parabéns… A luta continua!

Dito isso, a intenção do texto foi realmente refletir sobre os mecanismos de captura dos elementos do Hip Hop pelo sistema. Fato que não começou com o Hip Hop, aconteceu com o jazz, o blues, a capoeira, o samba, o funk, entre outros. Acredito que para compreendermos profundamente tais questões seja preciso pensar coletivamente. Percebo que a forma como o capitalismo atua sobre a cultura de rua é a seguinte: nos jogaram armas e drogas, criamos o Hip Hop, nos retiram o Hip Hop e nos devolvem as armas e as drogas no formato de encarceramento em massa e genocídio da juventude negra de periferia. . O que parece ser uma inclusão, se não tomarmos cuidado pode facilmente se tornar instrumento de exclusão. 

Então, manos, minas e monas, "nem tudo que reluz é ouro", "nem tudo que brilha é relíquia nem joia".


REFERÊNCIAS: 

Spensy Pimentel. 1997. O livro vermelho do hip hop. 
Markão Aborígine. 2017. O Hip Hop Em Mim.
Arthur Moura. 2018. O Ciclo dos Rebeldes: processos de mercantilização do rap no Rio de Janeiro.
Karl Marx e Friedrich Engels. 2013. O capital: crítica da economia política. 

ESCRITO POR:

Thiago Augusto Pereira Malaquias 
Formado em Psicologia pela UFPB 
Contato: tapm83@gmail.com 
https://m.facebook.com/psicologiaperiferica/

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