No primeiro debate para o pleito da cidade de São Paulo, além da discussão rasa por boa parte dos candidatos que não entraremos no mérito, uma fala infeliz ecoou no imaginário do Hip Hop. O deputado estadual Arthur Do Val, conhecido como 'mamãe falei' proferiu as seguintes palavras ao se referir sobre as atividades educacionais feitas nas escolas públicas e centros educacionais: “os filhos das mães da periferia vão ter educação dentro da escola, e não gastar sua energia tendo aulas de pixo, de breakdance”.
Antes de qualquer defesa sobre a citação de elementos da cultura Hip Hop, é necessário expor quem é o inepto ser que vomitou tal afirmação. Arthur Do val, hoje deputado estadual em São Paulo, é um dos fundadores do grupo de direita MBL, que foi um dos responsáveis pelo desmantelamento constitucional que ocorreu no Brasil em 2016. Dono de um canal no YouTube dedicado a proliferar assuntos supostamente liberais, mas que não passam da velha ótica fascistoide de sempre. Do Val é representante do pensamento hegemônico de direita e por vezes ataca a cultura oriunda da periferia.
Em maio de 2018, o grupo Racionais Mcs virou leitura obrigatória no vestibular da Unicamp através do seu disco Sobrevivendo no Inferno de 1997, o futuro deputado na época fez um vídeo criticando a atitude acadêmica de inclusão do álbum em sua bibliografia, usando adjetivos desrespeitosos com o grupo, chegando a chamar de “lixo e bosta”. Além da analise rasteira, desonesta e sem embasamento nenhum do disco, ainda cometeu vários erros sobre interpretação das letras, mas isso não vem ao caso. Numa outra ocasião, o agora candidato a prefeito, filmou duas grafiteiras e as ameaçou por estarem, segundo ele, cometendo ato de vandalismo ao praticar a arte em um muro. E quem não se lembra de João Dória acinzentado a cidade de São Paulo e travando uma guerra contra grafite?
Mas por que o Break ou o grafite incomoda tanto?
O Hip Hop é uma brecha no sistema. É o resultado histórico das políticas de colonização, opressão, exploração, aprisionamento e privação intelectual. Cultura nascida de imigrantes de uma ilha caribenha colonizada, que partem para os guetos de Nova York, em uma área destruída pela implantação de uma ideia liberal, onde residem negros e latinos, em meio ao lixo, prédios destruídos, desalojados, incendiados, à bancarrota. Num cenário caótico como esse, se esperaria o óbvio, que os que se encontram ali seriam tragados pela própria sorte. Mas não, dos escombros do Bronx surge uma das maiores expressões de arte dos últimos tempos. Capaz de aliar quatro elementos diferentes, e subverter a ordem hegemônica do pensamento da época. Os aparelhos sonoros obsoletos já não aproveitados pelas classes altas e jogados no lixo viraram ferramentas poderosas para criação da música subversiva. A arte dos muros e estações de trem que não figuravam nas grandes galerias é constituída com expressão vivificada do gueto. A criação da dança que em parte foi inspirada nos soldados negros que voltavam do Vietnã para o seu lar, mas amputados. E os jovens negros do gueto que usou o poder da voz inspirada nos griots africanos, aliado à consciência crítica e se tornaram Mestres de cerimônia.
Bronx, Nova York, anos 60 |
Hierarquia racial
Princialmente na modernidade, a cultura que não fosse associada a braquitude era inferiorizada. Isso não é só musicalmente, mas tudo que tinha relação com a população negra. O racismo é uma continuação do processo do capitalismo primitivo, isto é, precisava ser inventado. Não se escravizava pessoas no continente africano por serem negras e assim tidas como inferiores e não-humanas. Mas o oposto, inventou-se a justificativa baseada na inferioridade e cor da pele por que a escravidão era lucrativa e necessária para o avanço do capitalismo e exploração dos continente americano.
Fato é que a escravidão sempre existiu desde a antiguidade, mas ela só tomou forma e característica racial com as colonizações. Para tal feito, ao longo dos séculos criou-se uma gama de teorias racistas e higienistas para justificar a separação de pessoas pela cor. Entre elas, maldição de Cam, darwinismo social, gobineauismo, lombrosianismo, apartheid, drapetomania, degeneracionismo, frenologia, leis de Jim Crow, arianismo, entre outras. Todas elas partiam da primícia de que o negro e o não-branco eram inferiores em algum aspecto e por isso era natural estar tal condição.
Poderíamos dar inúmeros exemplos de diminutos associados a cultura negra, mas como o assunto é o Hip Hop, tomemos de exemplo uma explosão musical que desde o seu inicio não foi aceita socialmente.
O jazz, irmão mais velho do rap, passou por um processo parecido. Por ser considerado um gênero musical radicalmente negro, e que expunha a vida árdua da população afro-americana nas suas letras e melodia, era considerada uma música inferior e desprezível. A edição do jornal Times-Picayune de 20 de junho de 1918 trazia em seu editorial a seguinte citação:
“Por que então a música de jass e a banda de jass? Pergunte-se, igualmente, o porquê da novela barata ou do doughnut engordurado. São todas manifestações de um traço inferior do gosto humano, que ainda não foi consertado pelo processo de civilização. Na verdade, poderíamos ir ainda mais longe, e dizer que a música de jass é a história indecente, sincopada e contrapontuada [...] mas, como todos os vícios, se tornou ousada até penetrar nos lugares decentes, onde também foi tolerada por causa de sua estranheza [...] Não reconhecemos a honra da paternidade, porém, diante de tal história sendo propagada, caberá a nós sermos os últimos a aceitar tal atrocidade em meio à sociedade educada?
Uma politica de Estado que investia pesado na inferiorização do “outro” era o regime nazista. Para além de camarás de gás, campos de extermínio, e discurso mitológico reivindicando uma superioridade que nunca existiu, o governo Hitlerista apostava sempre na propaganda como arma de subestimar o que era considerado degenerado. Veja no cartaz abaixo, onde a própria maquina de política estatal trata de deixar explicito o racismo contra negros e judeus.
Música degenerada: uma declaração do Conselheiro de Estado Dr. HS Ziegler |
Observe essas imagens de uma exposição em Düsseldorf na Alemanha onde se alimentava o imaginário de que existia uma arte degenerada, pífia, que não deveria ser apreciada. A apresentação mostrada à população alemã, incluindo escolas, tinha o objetivo de menosprezar a música tocada por negros. Saxofonistas chegaram a ser perseguidos pelos nazistas.
Esse pensamento não ficou arraigado somente ao passado, ele continua presente na sociedade atual. O Haiti, primeiro país a ter uma revolução escrava do mundo liderada por Toussaint Louverture, foi alvo de uma fala criminosa e racista do presidente Donald Trump que disse que os haitianos “vem de um país de merda”. Outro que abriu a boca para inferiorizar a cultura popular foi Flavio Bolsonaro (rachadinha, Queiroz), quando numa entrevista para um jornal local disse que se deveria investir em alta cultura em detrimento da popular, deixando claro a separação entre elas e que existe uma superior a outra.
O samba, o jazz, o rap, o funk, as religiões afro-brasileiras, ou qualquer outra manifestação que tenha vínculo com a cultura negra é inferiorizada. Não se trata de uma escala qualitativa para determinar o que é bom ou ruim. O julgamento é feito pela origem, e não pela obra em si.
O professor Oraçy Nogueira em seu estudo sobre preconceito de marca e de origem comparando o racismo no Brasil e nos EUA, traz o elemento da diferenciação sobre o processo discriminatório contra as pessoas negras nos dois países. No caso, o Hip Hop é remetido a ambos já que sua marca e origem é negra, imigrante e periférica, não podendo se camuflar histórica ou geograficamente sua gênese. A cultura das ruas é a continuação da diáspora africana em solo brasileiro, é a ancestralidade presente em cada mente, voz, muro ou chão que personifica os 4 elementos. O genocídio da população negra não vem somente através dos calibres da polícia, do encarceramento em massa, das privações materiais, ou das exclusões sociais. Ele é feito de uma maneira “extremamente perigosa mística racista, cujo objetivo é o desaparecimento inapelável do descendente africano, tanto física, quanto espiritualmente, através do malicioso processo do embranquecer a pele negra e a cultura do negro” (Abdias do Nascimento, 2016)
Portanto, a aversão ao Hip Hop não passa do ódio envernizado contra as populações negras e pobres, sendo que uma é espelhada na outra como aponta a autora Ângela Davis: “É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida”. Sendo assim, a cultura Hip Hop segue sendo representante dos pretos e periféricos, e é a prova cabal do crime perfeito que o Brasil tenta esconder (Kabele Munanga).
Não se deixe enganar, o que está em jogo não é a escolha de uma cultura em detrimento da outra, e sim, o velho e constante ódio de classe e raça impregnado socialmente. Querem exterminar qualquer estrato que remeta as origens da diáspora e que foram historicamente aniquiladas pela colonização. Não basta dizimar materialmente as populações pretas e pobres, é indispensável extirpar do imaginário social qualquer relação com a ancestralidade. Pois é ela que desatina a tragédia ocultada pelas mãos dos opressores. É a história viva que mantém sob evidencia a luta e resistência dos povos oprimidos.
O apagamento do Hip Hop e das culturas populares, também como sua pasteurização e esvaziamento é um projeto das elites. Pois eles sabem do potencial revolucionário que nossa arte tem, e não se cansarão enquanto não a destruírem.
Referencias bibliográficas e sites
Oracy Nogueira, Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga (São Paulo, Edusp, 1998)
Nascimento, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. S.Paulo: Boitempo, 2016
https://fpabramo.org.br/2010/09/08/nosso-racismo-e-um-crime-perfeito-entrevista-com-kabengele-munanga/
https://www.dw.com/pt-br/jazz-e-outros-estilos-musicais-degenerados-foram-alvo-dos-nazistas/a-16843797https://reverb.com.br/artigo/huminutinho-a-historia-do-saxofone-o-instrumento-musical-perseguido-na-alemanha-nazista