Escrito por: Thiago Augusto Pereira Malaquias. Periférico, oficineiro em unidades socioeducativas, cotista e bolsista no último período de Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba.
Essa semana, Luiz
Fernando Teixeira de Santana, molequinho de 10 anos de idade, morador de
Jabaquara/SP, filho de Rita de Cássia Teixeira dos Santos, ao pular o pequeno
muro de um terreno de uma empresa de ônibus desativada para pegar uma pipa, se
deparou com cães que eram usados como vigias da propriedade privada, que o atacaram
à mordidas, e mesmo com ajuda dos moradores, não resistiu e lamentavelmente
morreu.
Rita questionou sobre os
proprietários do terreno à prefeitura, que se limitou a dizer que é uma
"propriedade privada". A polícia irá investigar o segurança que
eventualmente passava pelo local para alimentar os cães. Dos seis cães que
atacaram Luiz, três foram abatidos pela polícia. Esse foi o desfecho de um 25
de dezembro para uma família na periferia, que eu penso que poderia ser minha
vizinha.
Após ler a
notícia e ao ver uma galera da periferia, que convive com a
molecada correndo na porta de casa diariamente, culpabilizando a criança,
entristecido imediatamente lembrei da minha infância e meus amigos, das correrias
pelos bairro, das brigas, das conquistas, dos risos, das broncas das mães, das
artimanhas pra pegar a pipa, tipo correr o bairro com uma vara de bambu de 5
metros. Para as pessoas o problema é o funk, a pipa... falta mais o que para
ficar evidente que é do direito ao lazer e ao uso dos espaços que tentam nos
privar, nem que seja nos exterminando?
Mas, diante do que
aconteceu com Luiz, a forma como aconteceu, também me veio à cabeça um episódio
de "Cidade
dos Homens", intitulado "Os ordinários".
É o quarto episódio da segunda temporada. Nesse episódio uns playboyzinhos vão
dar um rolê pela quebrada com Laranjinha e Acerola. E o que eles foram fazer?
Soltar pipa. Não só isso, foram fazer o que é típico, tradicional e divertido, que
é correr atrás de pipa. Até porque, como eles mesmos gritam olhando para o céu:
"pipa vuada não tem dono, é de quem pegar primeiro!".
Para quem se lembra do episódio
ou quem um dia já correu atrás de pipa, “já tosou”, “já aparou”, “já foi
mandado”, não há mistério no trecho que nos importa no momento. Nas cenas, como
disse Acerola, o playboyzinho queria "pagar de machão", o desafiando
a invadir a propriedade e subir na árvore pra pegar a pipa que vários corriam
atrás. Ambos pularam o muro e subiram na árvore. Até que um segurança, um
tiozão, de roupa velha e amassada soltou os cachorros. Assim eles ficaram
presos no alto da árvore, enquanto o tiozão resmungava que tinha o dia inteiro
pra poder esperar a polícia chegar ou os cachorros atacarem. E ali nas alturas
rolaram algumas cenas até que a solução aparecesse.
Como os jornais fornecem
diferentes notícias, parciais e pela metade, o episódio me veio à mente porque
os elementos que se repetem na realidade do Luiz e na ficção de Cidade dos
Homens chamam atenção para algumas reflexões: a) algumas crianças brincando; b)
um tiozinho trabalhando de segurança; c) cachorros usados como guardas, e; d)
uma propriedade privada improdutiva.
As crianças. Quem não tem
uma vizinha com um filho que pede dinheiro pra linha? Quem nunca estimulou o
uso ou aconselhou a meninada a não usar cerol? Quem nunca viu a bagunça e ouviu
a gritaria? Porra, quem nunca riu pra caralho com as confusões entre meninos
que depois de 20 minutos passam correndo novamente, como se nunca tivessem se
desentendido, felizes, e isso sob olhares de todos? Quem nunca fez nada disso
não vai entender a defesa do presente texto: Nossas crianças têm direito à infância.
Deveríamos perguntar é cadê as áreas de lazer? cadê as oficinas pedagógicas?
cadê o esporte? cadê o incentivo de verdade? Por que quando jovens do centro se
divertindo em uma boate, que pega fogo, procuram alvará de funcionamento e os
proprietários, mas quando sufocam outros na periferia culpam a vítima, a música
e a família? Será que esse meninos e meninas, que os pais podem levar em
festivais e comprar pipa de 200 reais em formato de dragão, correm o mesmo
risco que nossas crianças nos espaços abandonados das periferias?
O segurança. Na
realidade, provavelmente é um pobre que recebe para cuidar da propriedade
privada de ricos e suas de empresas. Não vai se aposentar dignamente. Fica com as
sobras, as obrigações, o trabalho sujo e será alvo da Polícia, além de escudo
do proprietário, um belo coringa de baralho, ou simplesmente laranja.
Igualmente é na ficção, um tiozão com medo de ser roubado protegendo um lote
cheio de mato. Trabalhadores pobres que recebem migalhas da elite atacando
aqueles que a elite elege como perigosos. Esse fato também é digno de atenção.
Os cachorros. Se alguém
não se sensibiliza com uma criança, mas se revolta contra a violência contra
animais: três cães abatidos pela polícia. Mas, antes, eram mal alimentados e
serviam de vigia, ou seja, uma vida de exploração no trabalho. Ou será que só o
cavalo da carroça do tio que recolhe restos de comida sensibiliza? Nem os
cachorros escapam da exploração do capitalista e ação letal da polícia.
Já a propriedade
privada... ah, por ela escravizam o trabalhador, maltratam os animais e
transformam uma criança em suspeita. Mãe pobre, filho pobre morto, um tiozinho
pobre investigado, animais maltratados abatidos, prefeitura negligente,
empresários blindados e protegidos. Só pobre se fode. É nessa prevalência da
propriedade privada sob as vidas pretas e pobres que reside nosso mal. O
cachorro vive e morre por ela. O tiozinho vive e se torna réu por defender ela.
A criança é morta porque vale menos que um pedaço de terra.
Já é revoltante ver
morador financiando a indústria da segurança privada com cerca elétrica,
câmeras e pitbulls pra proteger seus bens básicos, não deveria ser assim entre
nós. Contudo, um empresário que mantém um terreno improdutivo, explora um
trabalhador e cria cães assassinos, no mínimo passa a mensagem de que qualquer
um daquele território representa uma ameaça a seus bens, que já não são
básicos, são sua fonte de lucro. Tanto faz se é moleque correndo atrás de pipa,
se é procurando espaço pra jogar bola ou se é a vozinha procurando folhas para um
chá. A propriedade é privada, não beneficia os moradores da região e mesmo
improdutiva os pobres não podem pisar naquele pedaço de terra.
Essa propriedade não é de
nenhum pobretão. Nenhum de nós tem, e se tivéssemos não deixaríamos um terreno
de, sei lá, uns 15 ou 20 mil metros quadrados parado, pagando funcionário para
alimentar precariamente animais. E qual utilidade desse terreno para o bairro?
Tem serventia ou só tem cachorro assassino e depósito de dengue?
Em nome do Luiz, da Rita
e em nome de todos moleques e molecas da periferia, da nossa história, da nossa
realidade, agora, sim, vale a pena refletir sobre o desfecho do trecho do
episódio, que infelizmente não se reproduziu na vida real. Laranjinha e outros
meninos levaram uma cadela no cio e colocaram no terreno, logo que os cachorros
avistaram a cadela correram, assim o playboyzinho e Acerola puderam descer da
árvore e correr. Todos descem a rua correndo e rindo... como meu pai fez e me
ensinou, como fiz e ensinei minha filha que também já fez.
A mensagem que Laranjinha
e Acerola deixam é a de que TEM QUE SER NÓIS POR NÓIS, SEMPRE!!! Esse trecho do
episódio mostra tudo que uma reportagem não mostra, omite.
Eu dou todo apoio que me
for possível, caso os moradores decidam lutar pela desapropriação do terreno e
exigir que transformem o espaço em um Centro Recreativo com cinema, teatro,
palco, danças, cursos, roda gigante e tudo mais para molecada da região para
prefeitura manter funcionando. Se o problema é a molecada correndo atrás de
pipas, pulando muro, cerca, atravessando ruas, isso vai até reduzir o número de
pipas no ar... pode botar fé!
Mas não se engane, sempre
que houver vento, vai ter nossas pipas no ar e criança correndo, sim. E se eu
pegar primeiro é minha... Eu defendo essa lei!!!