Thiago Augusto, militante do Hip Hop que é oficineiro em unidades socioeducativas fala sobre a relação entre trabalho infantil e atos infracionais a partir de letras de RAP.
- A REALIDADE DO TRABALHO INFANTIL NO BRASIL
Quem nunca ouviu frases do tipo: “é melhor o moleque estar
trabalhando do que estar na rua fazendo bagunça”, “o trabalho enobrece”,
ou até mesmo “graças ao trabalho árduo durante toda a vida eu conquistei
tudo isso”? Quem é ligeiro está ligado que, geralmente, colocam uma penca
de crianças para trabalhar nas ruas, que a “nobreza” é quem menos trabalha e
mais rouba e que quem sustenta esse discurso não conquistou nada além de
traumas por uma infância roubada, analfabetismo, problemas de saúde,
subserviência e dívidas intermináveis. Isso é o imaginário do oprimido permeado
pela ideologia moralista do opressor.
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, além de instituir como dever do Estado a garantia dos direitos à
saúde, educação, lazer, cultura, profissionalização, etc., também proíbe a
exploração do trabalho de crianças e adolescentes até os 14 anos de idade.
Porém permite que adolescentes de 14 a 18 trabalhem na condição de aprendiz.
Mesmo assim, em 2016, no Brasil havia aproximadamente 2,4 milhões crianças e
adolescentes sendo exploradas pelo trabalho, conforme dados do levantamento realizado pelo Fórum Nacional de Prevenção e. Erradicação
do Trabalho Infantil - FNPETI. Diante disso, vem o
questionamento, como o trabalho infantil é representado nas letras de RAP? Qual
a contribuição das letras de RAP para a compreensão e o enfrentamento das
causas e consequências dessa exploração que é invisibilizada e naturalizada por
toda sociedade?
- AS CAUSAS DO TRABALHO INFANTIL E O RAP NACIONAL
Estudiosos são enfáticos ao apontar que a causa do trabalho infantil é a
DESIGUALDADE SOCIAL. Essa realidade é retratada em diversas letras do RAP de
protesto e denúncia. Em “Eu não
pedi pra nascer”, do Facção Central; “Cisco”, do DMN; “Mágico
de Oz”, do Racionais Mc’s, “Sem país
das maravilhas”, do A286, entre outros. O primeiro
trecho do som “Olha o
menino”, de Helião e Negra Li, diz: “Olha o menino,
ainda não tem idade, mas realidade aí afora filho chora. Pode ser bem triste.
Miséria existe, nos quatro cantos da grande cidade. Cheio de coragem de lutar
que tem, vendendo drops no trem”. É pouco? Então confira “Vale da escuridão
II”, do Realidade Cruel: “Moleque que sonha na corrida. Comprar
uma Titan e ser entregador de pizza. Tirar a mãe do corre e ver a irmã mais
nova chegar até os 15 sem ter que abandonar a escola”. As letras retratam
crianças e adolescentes que necessitam trabalhar devido a pobreza que os
assola.
Outra causa do trabalho infantil, associada à desigualdade, é o CONSUMISMO.
Em uma sociedade em que “Ser” é “Ter”, em que o acesso à cidadania se dá pelo consumo,
o rico “explora-dor” seduz com bens materiais e escraviza o desejo do
“consome-dor”, que é pobre. Se liga, na história de “Marquinhos Cabeção”, que morava em um “barraco de madeira, no meio da favela [...] sua
vida, não tava tudo azul, sua mãe lavava roupa para rico na zona sul, se matava
passava humilhação, pra colocar em sua mesa arroz com feijão”. Nesse
som, o rapper Mv Bill, uma referência no assunto, que já contou ter sido
vítima do trabalho infantil, ainda diz uma parada sobre consumismo que afeta
diretamente a autoestima dos moleques pobres: “a ilusão pela TV, veio
primeiro, era tênis camisa e boné, ainda diziam se você ainda não tem o zé
mané, eram coisas que sua mãe não poderia lhe dar”.
Se tratando das consequências da inserção precoce de crianças e
adolescentes no trabalho, que podem ser FÍSICAS (ex. problemas de saúde,
lacerações), PSÍQUICAS (ex. baixa autoestima, falta de perspectiva do futuro) e
SOCIAIS (ex. evasão escolar, desemprego). A realidade sem escolaridade é
versada em “Outro
caminho”, do Facção Central, em um trecho em que a falta de
perspectiva de futuro e o desemprego aparecem como implicação da baixa
escolaridade: “me dão no tráfico 500 conto por semana, respeito, piranha na
cama, fama. No trampo com a quinta série de escolaridade é um salário sem
passe, cesta básica por milagre”. Com isso, é como em “João
Ninguém”, do Detentos do RAP, naquela parte em que o Eduardo Taddeo começa a
cantar: “Meu Deus, que porra é essa, 34 anos, não tenho um ap no CDHU, nem
tem um fusca, já pensou nisso mano? Um filho da puta que não sustenta a própria
família, eu quero que o mundo se foda, a partir de agora vai ser assim, oh!”.
Entretanto, uma consequência, extremamente polêmica e delicada, que
afeta precisamente a periferia, é o ENVOLVIMENTO EM ATOS INFRACIONAIS. E já não
é novidade que quando a escola não educa, o crime recruta. Então imagine: uma
criança vendendo água no sinal por um real, do outro lado da rua outra criança
vendendo pedra por dez reais, o capitalismo ensina a maximizar os lucros… Além
disso, “a necessidade não se submete às leis”.
Essa consequência também está lá em “Olha o menino”: “E o menino tá perdido, tá perdido na ilusão [...] E o seu lema é
dim dim [...] Olha o menino ainda não tem idade, mas realidade na criminalidade,
pode ser bem feio. Daquele jeito, olha o menino resolvendo”. O ato
infracional surge como uma possibilidade de subsistência. Pega a visão dos
versos em “12 de
outubro”, do Facção Central”: “É dá esmola pelo amor de
Deus num dia, no outro é assalto, não reage, vadia”. E em “Marquinhos Cabeção”, novamente: “pequenos furtos levavam ele a loucura, já não lembrava
mais daquela vida dura. Tava se levantando, meteu um Fiat Uno, suas marcas eram
Cyclone, TCK e Mizuno”.
É compreensível que as pessoas tenham dificuldade de entender
determinados atos infracionais como uma superexploração da força de trabalho
dos pobres. Até no RAP vamos encontrar contradições. Por exemplo, no som “Eu queria mudar”, do Pacificadores, em um trecho diz: “Trabalho exige muito, roubar é
meu vício”; e logo após diz o contrário: “pra mim, roubar é minha
profissão”. Até dentro do RAP existe uma dificuldade em se assimilar que
diversas práticas taxadas como criminosas, ou atos infracionais, são formas de
trabalho. Por vezes ouvimos rupturas como trabalho “honesto” e “desonesto”,
“suado” e “fácil”. Mas como poderia ser um dinheiro “fácil” se os riscos são
tiros, prisão e caixão lacrado? Mais uma vez, a alienação faz os moleques
fisgarem a isca do anzol do inimigo.
Por mais que seja um tabu considerar determinadas atividades como
trabalho, isso ocorre pela desinformação que o sistema implanta na população,
pois, a Organização Internacional do Trabalho – OIT, caracteriza na chamada “Lista
TIP” o tráfico de drogas como uma das piores formas de trabalho. Para somar,
existe uma carga moral burguesa na ideia de trabalho que o eleva ao divino, que
é pura alienação, ideologia usada para garantir que o dominador se perpetue no
poder.
Enquanto o menino está no sinal vendendo cigarros ninguém se lembra do ECA para protegê-lo, mas se ele trocar o produto e começar vender maconha,
por exemplo, toda sociedade se lembra, mas apenas do capítulo que trata das
medidas socioeducativas. Passam a molecada da invisibilidade da exploração do
trabalho infantil para a espetacularização da criminalização. Quem está na
função, está dando um trampo, a ilicitude da prática não descaracteriza seu
status de atividade de trabalho. E enquanto isso as pessoas não compreenderem
isso, o governo vai fechar escolas e abrir cadeias para crianças.
O envolvimento de crianças e adolescentes com o atos infracionais ocorre
pelo mesmo motivo da inserção no trabalho infantil: necessidade financeira e/ou
ilusão de consumo. Enquanto muitos na periferia tem um “bico” (que não passa de
um trabalho precário) como o primeiro emprego, alguns tem a inserção no
trabalho diretamente em atividades consideradas atos infracionais pelo
judiciário. É o que acontece nos casos de tráfico, furtos e assaltos. Da mesma
forma que a garota é de “Sem país
das maravilhas”, é explorada pelo mercado do sexo,
qualquer garoto como “Marquinhos
Cabeção” deve igualmente ser considerado explorado pelo
mercado da droga ilícita, ambos são vítimas que deveriam ser alvo de proteção,
não de discriminação, aprisionamento e extermínio.
No livro “Falcão:
meninos do tráfico”, o tempo todo os autores Mv Bill,
Celso Athayde e Luiz Soares tratam das crianças e adolescentes como
“trabalhadores do tráfico”. Se tratando das letras de RAP e da realidade que
ele denuncia, o que mais há são exemplos do trabalho no tráfico. Em “Antes do
enterro”, do A286: “em vez de gerenciar, administrar
empresa, moleque de oito, sonha em ser gerente de biqueira”. Em “A vida é
desafio” do Racionais Mc’s: “Ser empresário não dá,
estudar nem pensar. Tem que trampar ou ripar para os irmãos sustentar”. A
lista de músicas que tratam o tráfico como atividade de trabalho é imensa:
Soldado do Morro, O Menino do Morro, Soldado Morto, Ruas de Terra e muitas
outras.
Dessa forma, diferente do imaginário da sociedade que acredita que o
trabalho infantil é um antídoto contra a criminalidade, na realidade, além de
não ser antídoto para nada, por vezes, é exatamente na relação com o trabalho
que crianças ou adolescentes têm contato com a criminalidade, seja na rua, em
um lava-jato, de garçom em bares, feiras, etc. A inserção precoce em atividades
precárias, que privam as crianças da vivência da infância, violenta a fase de
desenvolvimento que se encontram, sendo que elas deveriam ser protegidas e ter
seus direitos fundamentais garantidos. No trabalho ilegal as consequências são
as mais devastadoras possível, como aconteceu em “Marquinhos Cabeção”: “a morte era o que o pessoal não tava querendo, à noite acharam ele
morto com a camisa do flamengo”. Portanto, não é dinheiro “fácil” se os
meninos e meninas pagam com a própria vida.
Se trabalhar na infância é tão benéfico, por que os ricos não colocam
seus filhos nos ônibus para vender balas ou na esquina vendendo cigarro
falsificado? Porque os filhos dos ricos estão onde toda criança ou adolescente
deveria estar, (escola, curso profissionalizante, universidade), estão se
preparando para no futuro administrar empresas que irão contratar e explorar a
força de trabalho desses moleques, que evadiram a escola por causa da inserção
no trabalho, que foram criminalizados e estigmatizados. Tudo isso não significa que todo trabalhador infantil vai
praticar atos infracionais, mas que a maioria esmagadora dos que praticam atos
infracionais possuem histórico de trabalho infantil.
O RAP está aí, traficando informação, agora é compreender, pesquisar, se
informar, resistir e, se ele é uma arma, é hora de contra-atacar o sistema do
explora-dor. Se nossos direitos nunca foram assegurados, agora eles estão sendo
roubados. Com esse governo genocida e sua necropolítica, a defesa pela educação, por melhores
condições para as famílias cuidarem de seus filhos e filhas e por qualquer
direito consquistado através de lutas sociais deve ser radical. Afinal, nós da
periferia sabemos como são os finais das letras de RAP quando contam histórias
de moleques pobres recrutados pelo crime: no “Jardim
de Pedras” ou no “Playground
do Diabo”.
Escrito por: Thiago Augusto Pereira Malaquias. Periférico, oficineiro em unidades socioeducativas, cotista e bolsista no último período de Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba.