VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO RAP E O CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS

Mais uma caso de violência contra a mulher no Hip Hop. Outro rapper acusado de agredir a companheira. Dessa vez um dos ícones do "rap de mensagem", Neto do grupo Síntese, denunciado por agredir a também rapper Barbara Bivolt. Não detalharei aqui o acontecido, pois já deve ser de conhecimento de quem acompanhada o rap, pois saiu na maioria dos portais e redes sociais que cobrem o gênero musical. A intenção aqui é abordar a seriedade do fato, e por qual razão não pode ser esquecido ou como dizem "passar um pano".

Primeiramente que falar de violência doméstica no rap não é nenhuma novidade ou mimimi como alguns podem achar. Não é uma pauta feminista só de hoje. Já vem de tempos que mulheres protagonizam a luta contra o machismo que impera no Rap. E essa violência também não surgiu com os recentes casos. Dina Di já falava sobre esse real problema enfrentado pelas suas pares. Todos os seus álbuns foram assertivos com denuncias sobre as opressões que eram sofridas pelas mulheres. Um exemplo é a música Dormindo com o agressor (2008): 

Milhares de mulheres ao redor do mundo,
sofrem nas mãos de homens violentos, covardes em sentimentos
Pelos filhos são capazes de suportar o grosso das indignidades,
perde o prazer de viver, a autoestima, a liberdade”

Outro grupo que também já ilustrou situação semelhante foi o Atitude Feminina, no vídeo clipe da música Rosas (2006). A letra da música relata a homicídio de uma jovem por seu namorado. O filme ganhou bastante repercussão e virou tema de campanha contra a violência domestica.

Eu falei que estava grávida, ele não me escutou
Me bateu novamente, mas dessa vez não parou
Vários socos na barriga, lá se vai a esperança
O sangue escorre no chão, perdi a minha criança


Os casos de violência doméstica no Hip Hop são fartos. Quase toda semana é uma notícia. E só não são mais alarmantes porque a esmagadora mídia do Hip Hop é composta por homens, e esses fazem questão de silenciar essas violências, inclusive isso é uma autocrítica. Citarei alguns aqui que me recordo no momento, como o do rapper Flow Mc que agrediu a sua companheira ainda grávida. Ou do K. Magum que também foi outro agressor exposto e confesso do crime. Também tivemos recentemente o cantor baiano Moob que “apenas estrangulou” a namorada. Entre outros inúmeros casos que se formos fazer uma varredura na internet ou em silenciamentos particulares, com certeza, seriam bem maiores.

Tão flagrante que são os casos, que diversos coletivos feministas se organizaram para combater esse tipo de violência. Um deles é a Frente Nacional de Mulheres No Hip Hop que trabalha com o apoio de mulheres vítimas de agressão e denúncia esses casos.  Também foi criada o coletivo Não Poetize o Machismo, onde se reúnem relatos de abusos ocorridos contra mulheres em saraus e outros espaços de arte e cultura. Podemos também relembrar uma Lista com bandas brasileiras com denúncias de atitudes machistas, nessa lista conta com muitos artistas afamados do Hip Hop.

A estrutura do silenciamento e a luta antissistema

Inicialmente é necessário parar imediatamente com a desvalorização do discurso feminino. Mulheres sempre foram secundarizadas na maioria das sociedades. Comparadas a objetos e suas vozes foram silenciadas. Vide a repercussão da entrevista no programa Roda Viva da pré-candidata a presidente Manuela Dávila, onde teve sua fala impedida por várias vezes. No caso Bivolt-Neto, um dos principais subterfúgios era o de que Neto não tinha perfil de agressor e não tinha antecedentes em casos semelhantes, e que por isso era mais plausível ser mais uma briga de casal e estranhamentos mútuos, do que uma agressão propriamente dita. Ora, nenhum agressor nasce agressor, ele se torna a partir do momento em que agride. A vida pregressa sem histórico de violência não impede ações violentas posteriores. Fora que levantamentos dizem que os agressores podem não externar a sua violência em público, ou simplesmente disfarça-la de proteção.

E por fim, até quando as mulheres terão que deixar seus corpos para servirem de única prova do crime? Até quando precisarão de inúmeras evidências para legitimar o que estão afirmando? Isso não exclui o direito ao contraditório da outra parte, porém, garante que pessoas que sempre foram ridicularizadas e/ou taxadas possam expor acontecimentos com grau de confiança e verossimilidade. Aos homens basta vídeos ou declarações simplórias  para a presunção da inocência. Às mulheres, um caminhão de provas documentais e gravações e ainda assim correndo o risco do descrédito.

Numa sociedade perpetrada nas opressões baseadas nas estruturas, não basta ser quem não coopera com o mal. Numa dinâmica em que o racismo, o machismo, a homofobia, as intolerâncias estão institucionalizadas socialmente. É preciso mais do que não ser, é explicitamente necessário ser antirracista, antimachista, antihomofobia. Isto é, mais do que simplesmente se isentar diante dessas situações com o velho discurso “mas eu não pratico isso”, é importante se posicionar contrário e expor a total aversão a essas atitudes. O sistema aniquila mulheres, negros, pobres todos os dias. E a imparcialidade diante dessas situações é favorável ao opressor.

O Hip Hop não deve em hipótese alguma aceitar essas atitudes.

Crepúsculo dos ídolos e o martelo

Como no aforisma do filosofo Nietzsche, onde o martelo irá quebrar os pés de barro dos ídolos, o tempo vem revelando algumas verdades no Hip Hop e desconstruindo a mitologia da perfeição e militância em muitos casos. Nos últimos tempos, tivemos muitas decepções no Rap. Desde incongruências politicas, discursos de ódio, intolerância, homofobia e crimes de violência contra a mulher. Fãs passaram a enxergar verdadeiramente seus ídolos. A áurea intocável do mito idealizado tinha seus esqueletos no armário.

Vamos ao resumo da ópera, primeiro, ninguém deve se sentir culpado ou traído por ter gostado do trabalho de um artista até a sua derradeira ação. Gostamos e apoiamos o que acreditamos ser correto, e quando a arte não acompanha a vivencia é hora de repensar. E de preferência, não compactuar de maneira alguma com o erro.

O artista do Hip Hop, não é O Hip Hop em si. Não são deuses inquebráveis em sua majestade. Incorruptíveis. Isto é, por mais que os anos de caminhada e contribuição para o engrandecimento da cultura tenham sido admiráveis, não podemos mascarar as atitudes erradas. Quando um artista expõe seu machismo, misoginia, homofobia, preconceito e racismo, deve ser cobrado por isso. E quando se torna agressão contra a mulher, como nos casos citados, é irremediavelmente necessário a exclamação do acontecido. A cobrança e exposição imediata. Não vamos construir um Hip Hop melhor sem criticá-lo.

Em um texto escrito no ano passado, falei sobre como o capitalismo se apropria das desigualdades e mantém sua dominação baseada nisso, e de como o Hip Hop deve ser antagônico a essa questão. Portanto, um movimento construído nas bases sociais mais adversas, com inúmeras dificuldades, e que traz na sua gênese a luta contra a opressão das minorias, não pode ter parte com a violência direcionada às mulheres.



O Rap m Debate


Parceiros